Nada em biologia faz sentido, exceto à luz da evolução. O exemplo da vitamina D.

Artigo da responsabilidade do Dr. António Pedro Machado. Presidente do Congresso Update em Medicina

 

 

A vitamina D começou a ser produzida na terra há mais de 1,2 milhões de anos, quando um precursor do colesterol foi exposto à radiação ultravioleta (UV). Ela começou por atuar como os modernos protetores solares, protegendo os organismos que a produziam dos efeitos deletérios da radiação UV, com destaque para as lesões do DNA.

Do ponto de vista evolucionário, a primeira função da vitamina D foi a captação da radiação UV para proteger moléculas sensíveis, como o DNA e as proteínas. Esta função protetora da vitamina D foi de extrema importância há alguns biliões de anos para proteger da radiação ultravioleta os organismos marinhos que necessitavam da luz solar para fazer a fotossíntese (fitoplâncton e zooplâncton), numa altura em que a atmosfera ainda era pobre em oxigénio e a camada de ozono era ausente ou insignificante. É por esta razão que o fígado dos peixes de águas profundas que incluem o plâncton na sua cadeia alimentar, como o bacalhau, é rico em vitamina D, sendo, por isso, uma excelente fonte alimentar desta vitamina. Os mais velhos ainda têm na memória o sabor amargo do óleo de fígado de bacalhau que tomaram na infância para prevenir o raquitismo.

Há 550 milhões de anos deu-se um enorme salto evolutivo quando os organismos eucariontes (organismos vivos constituídos por uma ou mais células que possuem núcleos que contém a maior parte do material genético) desenvolveram um recetor nuclear para a vitamina D. Mercê da ativação deste recetor, a vitamina D passou a ter acesso indireto ao DNA para modificar a expressão de genes e regular a produção de proteínas. Sabemos hoje que a vitamina D modifica a expressão de mais de mil genes (5% do genoma humano) em vários tecidos humanos.

É através da ligação a este recetor que a vitamina D regula os níveis de cálcio e fósforo no organismo e promove o normal desenvolvimento do esqueleto. Porém, o espectro de ações da vitamina D é muito mais alargado porque o recetor expressa-se na maioria dos tecidos e células, tais como a pele, trato gastrintestinal, fígado, rins, ovários, endométrio, placenta, vasos sanguíneos, mama, pâncreas, músculo esquelético, tecido adiposo e células do sistema imunitário.

Há 400 milhões de anos, as espécies que deixaram os oceanos, ricos em cálcio, para viverem no ambiente terreste, pobre neste ião, tiveram que criar um sistema capaz de regular a homeostase do cálcio e desenvolver um esqueleto ósseo adaptado à locomoção em terra. Foi uma nova pressão evolutiva sobre a vitamina D que passou a assumir estas funções fisiológicas.

Paralelamente, a elevada complexidade dos micróbios terrestres exerceu uma nova pressão evolucionária no sentido do desenvolvimento de um sistema imunitário ainda mais sofisticado. O sistema inato havia surgido muito cedo na cadeia evolutiva, mas já não era suficiente para responder aos novos desafios, pelo que, há cerca de 500 milhões de anos, começou a desenvolver-se o sistema imunitário adaptativo, que tem requisitos energéticos muito elevados. Ora, sendo a regulação do metabolismo energético um dos efeitos genómicos mais remotos da vitamina D, ela assumiu um papel central na regulação do sistema imunitário. O facto de o recetor da vitamina D estar presente em todas as células deste sistema, designadamente nos monócitos, macrófagos, linfócitos B e T e células dendríticas, significa que a vitamina D tem um papel determinante na regulação da imunidade adquirida.

A suplementação com vitamina D está recomendada em crianças e adolescentes entre 1 e 18 anos para prevenir o raquitismo e, potencialmente, reduzir o risco de infeções do trato respiratório inferior. Volta a estar recomendada a partir dos 75 anos porque a suplementação reduz a mortalidade.

Na verdade, com o envelhecimento não só diminui a expressão dos recetores da vitamina D, como também a pele é incapaz de a sintetizar com a mesma eficiência dos tempos da juventude, o que contribui para um pior desempenho do sistema imunitário. A pele envelhecida produz menos 40% de vitamina D que a pele jovem. O facto de a suplementação com vitamina D aumentar os níveis circulante da vitamina D e a expressão do seu recetor reforça estas recomendações.

Na atual fase evolucionária, a vitamina D regula a homeostase do cálcio e a formação do tecido ósseo, o consumo de energia, a imunidade inata e adaptativa, o crescimento celular e a diferenciação e apoptose celulares, enquanto os ossos longos, ao alojarem a medula óssea, protegem as stem cells e outras células do sistema imunitário da radiação ultravioleta e de outras radiações.

Com a descoberta dos recetores da vitamina D, que se expressam em quase todos os tecidos, muitas outras funções biológicas da vitamina D começaram a ser reconhecidas, assim como a sua participação na patogenia de doenças como o cancro, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e doenças autoimunes. Os benefícios da suplementação com a vitamina D estão muito para além da saúde óssea e modulação do sistema imunitário inato e adaptativo. São exemplos a prevenção da evolução da pré-diabetes para diabetes, a prevenção da pré-eclâmpsia e a redução da mortalidade nos mais idosos.