Situado na parte de trás da cabeça, o cerebelo é uma estrutura que desempenha um papel fundamental no modo como o nosso cérebro aprende, adaptando as nossas ações com base em experiências anteriores. No entanto, a forma como esta aprendizagem ocorre ainda não se encontra completamente esclarecida. Um estudo realizado por uma equipa da Fundação Champalimaud traz nova luz a este tema, ao descobrir de forma inesperada “neurónios zombies”. Estes neurónios, células vivas mas com a sua função alterada, ajudaram a avançar a nossa compreensão dos sinais essenciais ligados à aprendizagem no cerebelo.

A palavra “cerebelo” significa “pequeno cérebro”, embora o número de neurónios desta estrutura corresponda a mais de metade dos neurónios do cérebro. O cerebelo é essencial para coordenar os movimentos e o equilíbrio, ajudando-nos a realizar tarefas diárias com facilidade, tais como caminhar numa rua cheia de gente ou praticar desporto. É também crucial para o processo de aprendizagem que nos permite associar sinais sensoriais a ações específicas. Por exemplo, sempre que pegamos num copo sem entornar o líquido que tem dentro, e que ajustamos facilmente a força aplicada ao peso do copo e ao quão cheio este se encontra, estamos a pôr à prova a capacidade do cerebelo em associar sinais visuais a respostas motoras correspondentes.

Os “sinais de aprendizagem” do cérebro

Para que a aprendizagem tenha lugar, o cerebelo monitoriza continuamente o mundo exterior e o resultado dos movimentos que nele fazemos. Quando nos enganamos, a informação sobre os nossos erros pode ser utilizada para ajustar a força das ligações cerebrais, conduzindo, ao longo do tempo, a alterações nas nossas respostas comportamentais a sinais específicos. No entanto, não se sabe exatamente como é que esses “erros” ou “sinais de aprendizagem” são representados no cérebro para conduzir a mudanças de comportamento aprendidas. A mais recente investigação do Laboratório de Megan Carey na Fundação Champalimaud, publicada na revista Nature Neuroscience, fornece provas convincentes de que a atividade de uma classe específica de inputs cerebelares, chamados fibras trepadoras, é absolutamente essencial para que a aprendizagem associativa aconteça.

Para estudar o papel das fibras trepadoras e dos seus alvos – as células de Purkinje cerebelares – na aprendizagem, os investigadores realizaram uma série de experiências com ratinhos. Utilizaram uma tarefa de aprendizagem clássica, conhecida como condicionamento do piscar do olho. Nesta tarefa, os ratinhos aprendem a piscar um olho em resposta a um determinado sinal, – uma luz, por exemplo –, que antecede um dado acontecimento, tipicamente uma ligeira lufada de ar dirigida a esse olho. Esta tarefa ilustra eficazmente a aprendizagem associativa, mostrando como os ratinhos aprendem a associar um sinal sensorial a uma resposta motora adaptativa – neste caso, o pestanejar.

“Na nossa experiência”, explica a Dra. Tatiana Silva, primeira autora do estudo, “utilizámos uma técnica chamada optogenética. Este método funciona como um comando altamente preciso para as células cerebrais, utilizando a luz para ligar ou desligar determinadas células de interesse em momentos extremamente específicos”. E acrescenta: “As fibras trepadoras respondem normalmente a estímulos sensoriais como uma lufada de ar no olho. Ao ativar com precisão estas fibras com optogenética, conseguimos induzir o ratinho a pensar que recebeu um sopro de ar, quando na realidade isso não aconteceu. Após estimularmos repetidamente as fibras trepadoras durante a apresentação de um sinal visual, os ratinhos aprendem a piscar o olho em resposta a esse sinal – mesmo na ausência de estimulação. Isto mostra que a atividade das fibras trepadoras é suficiente para produzir este tipo de aprendizagem associativa.”

Os autores conseguiram ainda demonstrar que as fibras trepadoras também são necessárias para que a aprendizagem associativa ocorra. “Quando utilizámos a optogenética para silenciar seletivamente as fibras trepadoras durante a apresentação de um sopro de ar”, explica Silva, “os ratinhos não conseguiram aprender a piscar o olho em resposta ao sinal visual”. A equipa de Carey manipulou de forma semelhante uma série de outros tipos de células do cerebelo, e constatou que nenhum era capaz de fornecer sinais de aprendizagem tão fiáveis como as fibras trepadoras.

O aparecimento dos “neurónios zombies”

Analisando mais de perto alguns dos seus resultados, os investigadores observaram uma reviravolta inesperada. Para manipular a atividade das fibras trepadoras através da optogenética, utilizaram ferramentas genéticas que permitem expressar/inserir nesses neurónios uma proteína sensível à luz, chamada Channelrhodopsin-2 (ChR2). E surpreendentemente, descobriram que, quando tentavam ensinar os ratinhos com a ChR2 a piscar o olho utilizando o método tradicional do sopro de ar, os animais não conseguiam aprender. Como explica Carey, após terem realizado registos sistemáticos da atividade neuronal no cerebelo destes ratinhos, “verificámos que a introdução de ChR2 nas fibras trepadoras alterou as suas propriedades naturais, impedindo-as de responder adequadamente a estímulos sensoriais standard tais como sopros de ar. Essa incapacidade, por sua vez, bloqueou completamente a capacidade de aprendizagem dos animais.”

“O que é notável”, diz Tatiana Silva, “é que estes eram os mesmos ratinhos que tinham aprendido perfeitamente bem a tarefa quando associámos o sinal visual com a estimulação das fibras trepadoras ao invés de um sopro de ar.” Involuntariamente, a equipa tinha alcançado um objetivo de longa data em neurociência: modular padrões específicos de atividade em neurónios específicos, sem interromper completamente a sua comunicação, o que resultou numa intervenção mais natural para elucidar o seu papel causal. Por outras palavras, embora as fibras trepadoras permanecessem espontaneamente ativas e fossem funcionais, o facto de a sua codificação dos estímulos sensoriais estar alterada deixou os animais totalmente incapazes de aprender a tarefa. Isto levou Silva a apelidá-las de “neurónios zombies”: células funcionalmente vivas mas incapazes de interagir como habitualmente com o circuito cerebral.

Devido à subtileza dos efeitos inesperados da introdução da ChR2 nas fibras trepadoras, a Dra. Megan Carey afirma: “Estes resultados constituem a prova mais convincente até à data de que os sinais das fibras trepadoras são essenciais para a aprendizagem associativa cerebelar. Os nossos próximos passos consistem em compreender por que razão a introdução da ChR2 conduz à “zombificação” dos neurónios e em determinar se as nossas descobertas se estendem a outras formas de aprendizagem cerebelar”. Parece que até os mortos-vivos têm algo a ensinar-nos sobre o mundo dos vivos.

Sala de aula da Natureza: Fibras trepadoras, sob a forma de heras, enrolam-se à volta dos troncos de uma árvore com a forma de célula de Purkinje, no recreio animado de uma escola populada por ratinhos. A ilustração (por Rita Félix) demonstra o papel essencial das fibras trepadoras como sinais de aprendizagem associativa cerebelar.