É Carnaval e época de disfarces. Uma excelente oportunidade para refletir sobre a nossa personalidade e como pretendemos mascará-la. É a única época do ano em que vestimos outra pele sem que alguém leve a mal. Aproveite!

Mesmo sem darmos conta, é frequente “sairmos e entrarmos” de nós mesmos. Por vezes, basta uma máscara ou um nariz de palhaço para nos atrevermos a ter comportamentos diferentes da nossa imagem e assumir papéis que de outra forma não encarnaríamos. Permanecemos associados ou dissociados de acordo com as nossas experiências de vida e não porque existe um código celular que determina “sou assim e não assado”. Apenas a memória se entretém a cada manhã, em frente ao espelho, a recordar quem fomos nesses dias de Carnaval. O resto é um complexo exercício de flexibilidade.

Autorização para “desencarnar”

Esta época é uma boa desculpa para esquecer a rotina. Na verdade, os mecanismos psicológicos que entram em jogo quando nos mascaramos já foram amplamente estudados pela Antropologia. Porém, atualmente, o Entrudo tornou-se mais um ritual da sociedade consumista que uma escapatória para construir uma nova identidade.

A primeira distinção a fazer quando nos mascaramos roda em torno do Ser essencial e do Ser existencial, tal como concetualizou o célebre filósofo e psicólogo Karlfield Durckheim. Ou seja, diferenciar o que nós partilhamos de forma essencial, a alma que convive em nós e com os outros, com a nossa existência individual, aquela que nos torna diferentes dos demais e a que damos o nome de personalidade.

Ramos da nossa identidade

Imaginemos um cocktail, uma mistura de diferentes ingredientes através dos quais criamos um sabor particular, único:

  • Por um lado, a sequência cromossómica, os genes, configuram a nossa estrutura corporal e biológica. Nos genes não está escrito o nosso destino, mas antes predisposições que podem manifestar-se segundo a relação que temos com o meio que nos rodeia, tanto ambiente como relações interpessoais. O temperamento é uma manifestação orgânica da nossa forma de agirmos perante os estímulos da vida, e esta é a primeira manifestação que imprime caráter.
  • Também misturamos aprendizagens que se colhem nos primeiros anos de vida. Os nossos instintos, necessidades e temperamento vão sendo moldados por aqueles que são responsáveis por cuidar de nós e pela nossa educação. Uma modelagem que não se produz apenas pelo que nos dizem e fazem, mas sobretudo pela forma como respondemos aos desafios da vida, como estilo afetivo (como somos amados e como amamos), assim como o controlo da impulsividade e a questão dos limites.
  • De seguida, chegará a escola, de onde emerge uma realidade a ter em conta: seremos diferentes daquilo que somos em casa. Dá-se início ao processo de construção de uma personalidade adaptada às relações e ao contexto em que se desenvolvem, sendo assim que entra em jogo o ambiente em que vivemos.
  • Por fim, a componente da formação da personalidade: as experiências vividas. O curso de vida de cada pessoa está pejado de vivências que vão construindo em nós uma rede de crenças, valores e significados com os quais iremos estruturar o conceito que temos de nós próprios, assim como o filtro através do qual iremos observar o mundo.

Esse Ser existencial baseia-se na mistura que apenas irá tomar novos sabores em função das relações que tenhamos e da interpretação que damos às experiências por que passámos. Ou seja, do sentido que damos à existência.

De alguma forma, existe em nós uma pessoa composta, à vez, por três outras pessoas: uma essencial, outra que chamamos de personalidade e outra a que chamamos de personagem. Esta última é a parte mais característica da nossa personalidade, aquela que nos faz ser únicos, irrepetíveis.

É o que acontece no Carnaval: assimilamos umas quantas características básicas de uma personagem e repetimos a sua interpretação até ficarmos satisfeitos. É o que conhecemos como estereótipo.

Como somos

Todo este conjunto de características próprias, a nossa identidade, acaba por traduzir-se em condutas alvo de observação, em que se manifestam rasgos de caráter do que achamos ser uma pessoa. Inclusive, parece-nos que quando alguém é de uma forma é impossível ser de outra, pelo que acreditamos ser inexequível mudar.

No entanto, a vida é um processo de contínua mudança. Se assim não fosse, viveríamos numa espécie de condenação, uma lotaria em que cada um seria obrigado a viver com a sorte ou azar que lhe calhasse. Mas na verdade só mudamos quando assim o desejamos, quando a vida nos dá lições que servem de estímulo.

Se as nossas atitudes são observáveis, e de elas soltam-se temperamentos e valores, é porque os demais são recetores do que acreditamos ser. Mas aí produz-se uma complexa realidade, já que existe uma zona cega, oculta aos nossos olhos: aquilo que os outros veem e nós próprios não.

Conhecermo-nos realmente

Descobrir como somos na realidade implica abrir as nossas zonas cegas, ser cada vez mais consciente da parte de nós que não vemos. Passa por entender as relações que temos e como nos mostramos em cada uma delas, que papéis ou funções assumimos, o que nos permitimos fazer ou não nos diferentes contextos que vivenciamos. Assim, a personalidade é uma estrutura perfeitamente instalada no nosso interior. Não somos uma peça única, mas algo que vamos construindo de acordo com quem, onde e para quê. Desta maneira, acabamos por ser todas as personagens, uma de cada vez, porque em todas elas vamos moldando os vetores que orientam a imagem que temos de nós próprios, assim como o conjunto de crenças que temos sobre a vida e sobre quem somos nela. Uma imagem que, amiúde, se sente atraiçoada porque pratica a incoerência mesmo sem querer. Porque simplesmente somos humanos e, por tal, sensíveis à imperfeição.

Talvez por tudo isto o Carnaval acabe por ser uma válvula de escape que nos permite mudar de máscara e, inclusive, rirmo-nos de nós próprios. E isso, por momentos, faz-nos bem. É saudável e libertador. Mas para o resto do ano é necessário esquecer a máscara e assumir as rédeas da nossa vida de forma séria e com autenticidade. Conhecer-se e aceitar-se é o melhor caminho para se desprender da necessidade de mascarar a nossa verdade mais profunda.