A doença inflamatória intestinal é um problema de saúde que está em crescendo nas sociedades contemporâneas. No entanto, graças aos avançados meios técnicos e farmacológicos atualmente disponíveis, consegue-se proporcionar aos doentes, em grande parte dos casos, um bom quotidiano e um excelente prognóstico.

Artigo da responsabilidade do Prof. José Cotter, Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

Quando falamos em doença inflamatória intestinal, estamos fundamentalmente a referir-nos a duas doenças distintas que têm algo em comum: a doença de Crohn e a colite ulcerosa. Desde logo, distinguem-se porque a primeira pode atingir qualquer segmento do tubo digestivo (desde a boca até ao ânus), se bem que mais frequentemente atinja apenas o intestino delgado e/ou o intestino grosso; enquanto a segunda atinge apenas o cólon (intestino grosso).

Ambas têm em comum o facto de poderem provocar, conforme o nome indica, inflamação dos segmentos atingidos, além de ulceras, aftas e outro tipo de complicações, como sejam abcessos, fístulas e estenoses (diminuição de calibre/aperto de alguns segmentos intestinais atingidos pela doença).

Ambas são doenças crónicas que evoluem ao longo do tempo sob a forma de surtos intercalados com períodos de acalmia, não existindo ainda uma cura definitiva para as mesmas, apesar dos grandes progressos nos tratamentos a que se tem assistido nos últimos anos. A inexistência da cura estará relacionada com o facto de se desconhecer com exatidão os fatores que originam o aparecimento da doença.

NÚMERO CRESCENTE DE NOVOS CASOS

A colite ulcerosa e a doença de Crohn têm vindo a estar cada vez mais em foco porque se tem assistido a um número crescente de novos casos a nível mundial, com especial destaque para os países desenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. Em Portugal, estima-se que existam cerca de 150 doentes por cada 100.000 habitantes, distribuídos igualmente por ambas as doenças, com predomínio do sexo feminino, atingindo em maioria o escalão etário dos 17-39 anos na doença de Crohn e dos 40-64 anos na colite ulcerosa.

Portugal está assim num meio termo entre os países em que a doença é mais frequente e os países de mais baixa frequência, embora exista a perceção de que os novos casos estão a aumentar.

INTERFERÊNCIA NA QUALIDADE DE VIDA

Quer a doença de Crohn quer a colite ulcerosa são doenças benignas, ainda que, pela sua persistência, sintomas associados e complicações, possam interferir significativamente com a qualidade de vida dos seus portadores. Elas manifestam-se mais frequentemente por dores abdominais, diarreia, perdas de sangue com as fezes ou emagrecimento. Outros sinais ou sintomas podem surgir quando da existência de complicações associadas, como sejam febre, cansaço intenso, falta de apetite, vómitos, distensão abdominal ou anemia.

O diagnóstico faz-se por um conjunto de análises e exames complementares, com destaque para a colonoscopia, bem como pelas biopsias que esta permite recolher. Outros exames podem revelar-se extremamente importantes na avaliação e estudo destes doentes, com realce para a cápsula endoscópica na doença de Crohn, que permite uma observação rigorosa do intestino delgado e, desta forma, contribuir para que se perceba a extensão exata da doença, permitindo assim a adoção dos tratamentos mais adequados.

Os tratamentos têm, essencialmente, por objetivo controlar os episódios agudos e manter a doença em remissão, sem atividade, de forma a não interferir com o quotidiano e a qualidade de vida, bem como diminuir a probabilidade de aparecimento de complicações.

EVOLUÇÃO DOS TRATAMENTOS

A evolução dos tratamentos tem sido notória nos últimos anos. Com a possibilidade de utilização de fármacos que combatem a inflamação, outros que atuam sobre o controlo das defesas do organismo e outros que impedem reações descontroladas do próprio sistema imunitário que ainda originariam mais inflamação, os médicos especialistas em Gastrenterologia conseguem hoje resultados excelentes no controlo destas doenças. Resultados esses que seriam impensáveis há alguns anos, quando o leque de opções para tratamento específico era manifestamente exíguo e de eficácia substancialmente reduzida.

Felizmente, tudo mudou e hoje os cidadãos com doença inflamatória intestinal, desde que se disponibilizem para uma vigilância clínica regular e sejam aderentes ao tratamento prescrito, podem ter um dia a dia normalizado, sem significativas restrições, na esmagadora maioria dos casos.

IMPORTÂNCIA DA ALIMENTAÇÃO

Pergunta-se frequentemente qual a importância da alimentação no aparecimento e agravamento destas doenças. Na realidade, nada está provado sobre esta questão, só estando recomendadas algumas restrições, em fases agudas com abundante diarreia, em que uma alimentação pobre em fibras, que não promova essa diarreia, pode estar, de facto, mais aconselhada; ou em situações em que, como consequência dos “apertos” atribuíveis à doença, existentes em determinados segmentos do tubo digestivo, haja necessidade de implementar uma dieta que não contribua para uma maior dificuldade de passagem dos alimentos nesses segmentos afetados.

STRESS, ANSIEDADE E CANCRO

Outro fator muitas vezes evocado relaciona-se com o stress e a ansiedade, como tendo alguma responsabilidade na instabilidade destas doenças. Sabe-se que, ao ter uma influência indireta sobre o sistema imunitário (“defesas do organismo”), haverá uma maior probabilidade num doente que sofra de doença inflamatória intestinal e que esteja submetido a uma “carga psicológica” aumentada, de vir a ter uma maior instabilidade traduzida por agudizações mais frequentes, sintomatologia mais exuberante e consequente interferência na sua qualidade de vida.

De referir que, apesar de serem doenças benignas, a cronicidade das mesmas e um controlo deficiente da sua atividade inflamatória aumentam o risco de cancerização, nomeadamente após os 8-10 anos de prevalência da doença. Por este facto, a partir dessa altura, os doentes devem ter um programa de vigilância específico, com realização de colonoscopias regulares, incluindo biopsias efetuadas ao longo de todo o intestino grosso, de forma a minimizar o risco de malignização, a qual, no caso de ocorrer, deverá ser detetada o mais precocemente possível. Realça-se a colonoscopia porque o cólon é o órgão onde mais frequentemente essas complicações malignas podem ocorrer.

EM SUMA

A doença inflamatória intestinal é um problema de saúde que está em crescendo nas sociedades contemporâneas, que pode atingir predominantemente o adulto jovem, de uma forma crónica, e que implica um seguimento clínico especializado por médico gastrenterologista. O seu diagnóstico e acompanhamento implica, além dessa vigilância clínica especializada, a utilização dos meios de endoscopia digestiva, só ao alcance dos gastrenterologistas, que são os especialistas que dominam esta tecnologia, a qual desempenha um papel importante, não só no diagnóstico, mas também no acompanhamento com vista à otimização dos tratamentos. Em alguns casos, a endoscopia intervém ainda na terapêutica de algumas complicações, evitando-se cirurgias invasivas com todos os inconvenientes daí inerentes.

A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, no âmbito da sua atividade científica e formativa, dedica a maior atenção à doença inflamatória intestinal, que é hoje uma doença comum para ser abordada por qualquer médico especialista em Gastrenterologia, conseguindo-se, face aos avançados meios técnicos e farmacológicos disponíveis, proporcionar aos doentes, em grande parte dos casos, um bom quotidiano e um excelente prognóstico.