A fibrose quística (FQ) é uma doença genética grave que afeta principalmente os sistemas respiratório e digestivo, causando a acumulação de secreções espessa e viscosas nos pulmões, pâncreas e noutros órgãos. Apesar de ser uma doença rara, a sua relevância é inegável devido ao impacto que tem na vida dos doentes, das famílias e no próprio sistema de saúde.

Dra. Telma Barbosa (Foto Newsfarma)

Artigo da responsabilidade da Dra Telma Barbosa. Pediatra e Coordenadora do Centro de Fibrose Quística da ULSSAntónio, Porto

A FQ é classificada como uma doença rara, pois afeta menos de 1 em cada 2.000 pessoas, de acordo com a definição oficial da União Europeia. Em Portugal, a incidência nos últimos anos tem variado entre 1:7000 e 1:9000, estimando-se que existam entre 400 a 500 doentes diagnosticados. Apesar da raridade, é a doença autossómica recessiva mais frequente na população caucasiana.

Esta doença é causada por variantes de mutação no gene CFTR (Cystic Fibrosis Transmembrane Conductance Regulator), que codifica uma proteína com o mesmo nome, tendo esta uma função regulatória no transporte de iónico a nível da membrana celular. Sendo de transmissão autossómica recessiva, a pessoa afetada por esta doença tem de, obrigatoriamente, ter herdado 2 variantes de cada um dos progenitores. Indivíduos com apenas uma variante de mutação são considerados portadores, podendo transmitir o gene aos seus descendentes sem manifestarem quaisquer sintomas e portanto, sem doença.

Na FQ, a disfunção da proteína CFTR e acumulação de secreções espessas a nível pulmonar, pancreático, intestinal e noutros orgãos, estão relacionadas com determinados sintomas/sinais como a tosse crónica e infeções respiratórias frequentes; dificuldades no ganho de peso e crescimento; suor excessivamente salgado; obstrução intestinal; ou complicações hepáticas e diabetes em alguns casos.

A gravidade da doença varia de pessoa para pessoa, dependendo essencialmente das variantes de mutação presentes. Existem doentes com sintomas ligeiros, enquanto outros enfrentam complicações severas desde cedo, sendo que a doença pode progredir de forma mais rápida em doentes com maior frequência de infeções pulmonares, ou que enfrentem dificuldades em aderir ao tratamento. Na prática, a FQ exige um esforço constante para gerir os sintomas e prevenir complicações e, para muitos doentes, o dia a dia inclui fisioterapia respiratória, administração de enzimas pancreáticas, terapias inaladas e hospitalizações frequentes. O impacto na qualidade de vida é significativo, afetando não apenas os doentes, mas também as suas famílias, que desempenham um papel central no cuidado diário.

A contribuir para um melhor prognóstico está o diagnóstico precoce. Em Portugal, a FQ pode ser rastreada através do teste do pezinho, realizado nos primeiros dias de vida. O diagnóstico só será confirmado se existirem alterações da prova de suor e/ou se detetarem duas variantes de mutação específicas de doença. Quanto mais cedo for iniciado o tratamento, maior é a probabilidade de atrasar a progressão da doença e minimizar as complicações associadas.

Nas últimas décadas, os avanços no tratamento da FQ têm transformado a vida dos doentes. Além das terapias tradicionais — como fisioterapia respiratória, antibióticos e suplementos nutricionais —, surgiram novas terapêuticas moduladoras que atuam diretamente na proteína CFTR disfuncionante. Estas terapêuticas atuam através da correção ou melhoria da sua função, reduzindo a gravidade dos sintomas e atrasando a progressão da doença. Adaptadas a variantes de mutação específicas do gene CFTR, estas novas terapêuticas representam um avanço notável, pois tratam a raiz do problema e não apenas os sintomas. Embora nem todos os doentes sejam elegíveis, devido à variedade de mutações, a investigação continua a expandir as opções disponíveis, aumentando a esperança para um número crescente de pacientes.

No que diz respeito à principal causa de morbilidade e mortalidade na FQ, esta é a insuficiência respiratória, resultante de infeções pulmonares crónicas e da destruição progressiva dos tecidos pulmonares, o que afeta significativamente a função pulmonar e, consequentemente, a capacidade de realização de atividades diárias comuns.

Embora ainda não exista cura definitiva, há formas de melhorar a qualidade de vida dos doentes, nomeadamente:

  1. Adesão rigorosa ao tratamento: seguir os planos propostos de terapias, farmacológica e não farmacológica
  2. Evitar infeções: manter boas práticas de higiene e evitar ambientes com maior risco de contágio.
  3. Apoio psicológico: para lidar com o impacto emocional da doença.
  4. Exercício físico: fundamental para preservar a função pulmonar.
  5. Nutrição adequada: compensando dificuldades de absorção de nutrientes.

Se recuarmos alguns anos, a expectativa de vida para pessoas com FQ não ultrapassava as primeiras décadas de vida. Hoje, graças aos avanços no diagnóstico, tratamento e cuidados, a sobrevida média ultrapassa os 50 anos em muitos países. Este progresso reflete o impacto positivo das novas abordagens terapêuticas e do acesso a cuidados especializados.

Contudo, apesar dos avanços, a FQ continua a ser uma doença grave, que exige atenção constante por parte dos doentes, das suas famílias e dos profissionais de saúde. A investigação neste campo e ainda em curso, incluindo estudos sobre edição genética e novas terapêuticas moduladoras, alimenta a esperança de que, no futuro, possamos não só prolongar ainda mais a vida dos doentes, mas também melhorar significativamente a sua qualidade de vida.

Em suma, a FQ é mais do que uma doença rara. É um desafio que une ciência, medicina e sociedade em busca de um objetivo comum: transformar uma condição crónica numa história de superação e, quem sabe, num dia, numa doença curável.