Num país pequeno como é Portugal, com uns números desoladores como são os atuais no referente ao cancro colorretal, sabendo-se a lamentável repercussão que a doença e os seus tratamentos têm sobre a qualidade de vida das pessoas, assumindo-se que a mesma pode ser evitável, é imperioso que esta causa se torne um dos grandes objetivos da política de saúde dos próximos anos.

0 Prof.Dr. Jose CotterArtigo da responsabilidade do Prof. José Cotter, Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

O cancro digestivo engloba um grupo de doenças malignas intimamente ligadas à Gastrenterologia, de entre os quais, em Portugal, se destacam, pelo número de mortes anuais que originam, o cancro do cólon e reto  (4000 mortes anuais),  cancro do estômago (2300),  cancro do pâncreas (1400), cancro  do fígado (1000) e ainda o cancro do esófago (cerca de 200 novos casos por ano).

Para todos existem fatores de risco, como, por exemplo, quando há familiares de primeiro grau que tenham padecido da doença. Mas existe também uma prevenção primária transversal a todos, que passa pela ingestão de uma dieta do tipo mediterrânico (com abundante quantidade de frutas, vegetais, feijão, sementes, grão, nozes, cereais e azeite), além da tão portuguesa sopa de legumes. Associadamente, torna-se fundamental o combate ao excesso de peso, ao consumo de tabaco e ao sedentarismo. O excesso de ingestão de álcool deve ser combatido e, pelo contrário, privilegiado tanto quanto possível o exercício físico regular.

INVESTIMENTO NO RASTREIO

Em todos os cancros digestivos, a prevenção secundária é desejável, através de consultas médicas regulares e da realização dos exames subsidiários adequados. Mas destaca-se aqui a prevenção do cancro do cólon e reto.

E porquê este? Essencialmente, porque aqui existe a possibilidade, rara no organismo humano, de detetar lesões benignas (pólipos), que são precursores em 90-95% dos cancros e que, se forem diagnosticadas nessa fase ainda benigna e retiradas endoscopicamente, significarão a cura da doença.

Não chegando, portanto, a haver lesão maligna, evita-se a cirurgia e ainda os habituais tratamentos subsequentes (quimioterapia e, por vezes, radioterapia), os quais têm importante repercussão negativa na qualidade de vida dos doentes. Além disso, apesar desses difíceis tratamentos, hoje muito mais desenvolvidos do que outrora, a sobrevida não vai além dos 50% aos 5 anos, significando que apenas cerca de metade da população que padeceu de cancro do cólon e reto se mantém viva passados 5 anos da doença diagnosticada.

Desta forma, justifica-se um grande investimento no rastreio da população, principalmente acima dos 50 anos, idade a partir da qual o risco de aparecimento da doença aumenta significativamente.

DOIS TIPOS DE RASTREIO

Sabe-se que o cancro do intestino provoca na Europa 215.000 mortes anuais, o que corresponde a 1 morte a cada 3 minutos, constituindo-se assim como o segundo cancro com maior  mortalidade no Velho Continente.

Então, que tipo de rastreio pode ser efetuado? E que eficácia proporciona? Na realidade, existem vários métodos de rastreio, mas essencialmente são dois os mais utilizados: pesquisa de sangue oculto nas fezes e colonoscopia. O primeiro, que obriga a várias colheitas de fezes (podendo ser na própria habitação), com posterior entrega no laboratório de análises clínicas, apresenta uma razoável (ainda que insuficiente) capacidade de deteção de sangue no caso de existência de cancro (cerca de 60%), obrigando seguidamente a efetuar uma colonoscopia para confirmação diagnóstica. Pelo contrário, para deteção de pólipos, a sua sensibilidade é muito baixa, não indo além dos 30-35%, o que gera uma incerteza muito grande, correndo-se o risco de existirem lesões polipoides que, pelo facto de não serem retiradas, vão aumentando progressivamente de dimensões e elevando o risco de cancerização.

Por isso, a colonoscopia é hoje considerada, de forma consensual, o exame de eleição para o cancro colorretal. Porque é o que tem maior capacidade de diagnóstico e, acima de tudo, é o único que permite num mesmo tempo, se se justificar, tratar, retirar ou efetuar biopsias de qualquer lesão existente. No caso dos pólipos, permite retirá-los de imediato e enviá-los para análise.

SEM DOR OU DESCONFORTO

Atualmente, a colonoscopia é um exame efetuado sob sedação e, como tal, sem dor ou desconforto, obrigando apenas a uma limpeza prévia do intestino, também ela bem mais simples do que outrora. É um exame que permite ver a totalidade do intestino grosso, com uma duração média de 15-20 minutos, o mais informativo de todos os exames do intestino e o único que possui a vertente terapêutica atrás referida,  o que se constitui como uma mais-valia insuperável.

A colonoscopia tem um risco baixíssimo de complicações, a mais frequente das quais é a perfuração intestinal, que ocorre numa taxa média de 1 por cada 1000 colonoscopias efetuadas, conseguindo, contudo, ser bem mais inferior em centros com vasta experiência e que não tenham médicos em formação (como acontece nos hospitais públicos), mas apenas médicos especialistas.

Os únicos médicos que possuem capacidade para realizar as colonoscopias são os gastrenterologistas, uma vez que a aprendizagem das técnicas endoscópicas se desenvolve apenas ao longo da formação na especialidade.

Da mesma forma, ao contrário do que, erradamente, se está a tentar permitir em Portugal, a Direções Técnicas da Unidades de Endoscopia Digestiva, onde são efetuadas as colonoscopias e a generalidade dos restantes exames endoscópicos, só devem ser dirigidas por médicos especialistas em Gastrenterologia, pois estes serão os únicos que têm os conhecimentos necessários para poder coordenar e orientar corretamente os procedimentos, de forma a que estes decorram com a mais elevada qualidade e segurança para os cidadãos que a eles se submetem. A responsabilidade governamental  de quem dirige vai até aí, não se compadecendo com decisões que possam por pôr em causa os parâmetros de qualidade e segurança atrás referidos.

ESTRATÉGIA PARA MUDAR AS ESTATÍSTICAS

A colonoscopia é, pois, um exame fundamental para a prevenção do cancro do cólon e reto. A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, em concordância com outras prestigiadas instituições internacionais e múltiplos países da Europa Ocidental, recomenda a sua realização a partir dos 50 anos no cidadão sem risco familiar ou qualquer sintoma. Se alguma destas situações ocorrer, estará indicada a realização mais precoce do exame, sempre com o objetivo de despistar mais precocemente a existência de lesões que, até um determinado ponto do seu desenvolvimento, podem ser curáveis, contrariamente ao que acontece em diagnósticos mais tardios.

Será que, com esta estratégia, conseguiremos alterar as estatísticas atuais? Espera-se que sim, num médio prazo. Porque, de facto, é desalentador sabermos que estamos perante uma doença que é o terceiro cancro mais comum a nível mundial, com um número de novos casos estimado em 1 milhão e 234 mil por ano, muito mais frequente em países desenvolvidos (30,1/milhão de habitantes) do que em países menos desenvolvidos (5,9/ milhão de habitantes), representando na Europa 12,9 % de todos os novos cancros diagnosticados e responsável por 12,2% de todas as mortes por cancro.

DÉFICE DE MOTIVAÇÃO POLÍTICA

E porque não temos tido significativa diminuição da incidência da doença no nosso país? Essencialmente, porque nunca houve a suficiente motivação política para desencadear  e pôr em prática um verdadeiro programa de rastreio do cancro colorretal, semelhante ao de outros países desenvolvidos, em que a sensibilização da população se faz de uma forma persistente, em que a colonoscopia é um exame de primeira linha, em que os governos investem porque consideram a causa como um desígnio. É essa postura que se torna necessário impor em Portugal, onde algumas medidas meramente avulsas têm sido tomadas, mas onde o que de bom se tem realizado se deve, essencialmente, a iniciativas individuais e localizadas.

De forma muito oportuna, a Direção Geral da Saúde produziu Normas de Orientação Clínica sobre prescrição de colonoscopia, que permitem nomeadamente aos médicos de família estarem facilmente alicerçados para a prescrição do citado exame. E não se enganarem a si próprios e aos utentes com a utilização de testes de baixa sensibilidade, que apresentam uma relação custo/eficácia mais do que duvidosa.

Num país pequeno como é Portugal, com uns números desoladores como são os atuais no referente ao cancro colorretal, sabendo-se a lamentável repercussão que a doença e os seus tratamentos têm sobre a qualidade de vida das pessoas, assumindo-se que a mesma pode ser evitável, é imperioso que esta causa se torne um dos grandes objetivos da política de saúde dos próximos anos. Para isso, torna-se imprescindível, além da motivação do poder político, a colaboração da sociedade civil e das instituições. A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, com a envolvência de todos os gastrenterologistas, de acordo com os seus estatutos e como lhe compete, estará seguramente muito empenhada nesta causa, em prol da saúde da população, defendendo sempre os melhores cuidados com elevados padrões de segurança e qualidade.

Artigo publicado na Edição de Outubro 2015 (nº 254)