O adoecer mental está fortemente associado na opinião leiga a juízos morais que ainda transportam consigo vestígios de crenças antigas. Para além do erro em que consistem, elas criam, também, um obstáculo grave à resolução de problemas de saúde mental, individual e pública.

Artigo da responsabilidade da Dra. Elsa Lara, coordenadora de Psiquiatria no Hospital CUF Tejo

 

 

A crise pandémica trouxe não só novos confrontos com o luto e as ansiedades, como transtornou quadros e rotinas de vida, pessoais e profissionais, cujas disrupturas interferiram, e muito, com o equilíbrio de toda a saúde, e logo com a saúde mental também, senão principalmente. Os sinais começam a notar-se no aumento de queixas, ou pior ainda, na dificuldade em formulá-las junto dos profissionais de saúde mental: os psiquiatras.

Não esquecemos que a pandemia ocorreu pouco depois de uma outra crise, financeira, ter atingido, forte e desigualmente, a população. E conta-se ainda o espectro persistente e de uma crise ambiental cujos impactos na saúde mental originaram já a proposta de novos quadros clínicos. Será o caso da “solastalgia”, uma espécie de nexo de sofrimentos resultantes da impossibilidade em reconhecer o mundo de referência de vida quotidiana depois de rupturas catastróficas.

Não é, pois, alarmismo vir alertar para a necessidade de atualizar a atenção que deve ser dada à saúde mental, hoje. Temos de quebrar os obstáculos ao reconhecimento de um problema que se sabe estar já criado. É o caso, entre outros, do estigma associado ao adoecer mental.

A estigmatização consiste, genericamente, na atribuição de um descrédito sobre o indivíduo e que se lhe torna inerente como um atributo natural. Na sua origem, tratava-se de marcas inscritas no próprio corpo e que tanto permitiam aos outros identificar um sujeito, como por exemplo, um escravo, como assinalar noutros, sobrenaturalmente, um estatuto sagrado, obtido por uma relação direta com a divindade. O estatuto do estigma foi, portanto, durante muito tempo, ambivalente, mas o significado que prevaleceu foi o negativo.

O doente psiquiátrico é um caso claro de estigmatização. Não que tal não aconteça com outras doenças, mas o doente mental ao suscitar uma rejeição social, vê a sua própria condição agravada por essa segregação. A fraca literacia pública considera ainda a doença psiquiátrica incurável, levando o doente a interiorizar o seu estatuto de estigmatizado. Tal, reforça em “loop” a própria dinâmica social que o estigmatizou, dificultando, assim, o próprio processo terapêutico e prognóstico. É por esta razão que se tem dado uma atenção crescente à análise comparativa dos contextos de estigmatização interiorizada. Estudos verificaram diferenças na estigmatização do doente mental conforme se trate de sociedades conservadoras e tradicionalistas, ou modernas e liberais, sendo que estas últimas parecem tender para menor estigmatização. Outros estudos detetaram diferença segundo a concepção corrente na cultura pública. Ora de polarização entre sanidade e doença mental, ora pelo contrário, de representação de ambas num continuum dimensional. Neste último caso, as sociedades serão menos estigmatizantes do doente mental.

A investigação científica e a experiência clínica ponderada, não deixarão de trazer, tal como o têm feito até agora, avanços na forma de diagnosticar e tratar as doenças mentais. Em simultâneo, será da maior utilidade promover, também, junto da cultura pública, níveis de literacia que libertem o saber leigo cada vez mais, das categorias que herdou, tais como “tarado”, “maluco”, “louco”, ”poucochinho”, e outras pejorativas e fortemente estigmatizantes.