Quando consideramos os défices cognitivos causados por um acidente vascular cerebral (AVC) e as mudanças emocionais associadas, o conceito do “erro de Descartes” proposto por António Damásio torna-se ainda mais significativo.

Artigo da responsabilidade do Dr. Alexandre Bogalho. Psicólogo Clínico. Neuropsicólogo de um Centro de Medicina de Reabilitação de Adultos

 

Descartes formulou a famosa frase “Penso, logo existo”’, mas Damásio apontou que o erro reside na separação mente-corpo. Doentes neurológicos revelam a íntima relação entre a memória e as emoções.

COMPREENDER AS EMOÇÕES E O SEU IMPACTO

Um AVC pode resultar em lesões no cérebro que afetam diretamente as funções cognitivas, como memória, atenção, linguagem e raciocínio. Além disso, as mudanças emocionais são comuns após um AVC, podendo incluir depressão, ansiedade, labilidade emocional e dificuldade em regular as emoções.

Nesse contexto, a visão dualista de Descartes, que separava mente e corpo como entidades distintas, pode ser problemática ao lidar com os défices cognitivos e emocionais pós-AVC. Ao negligenciar a interconexão entre mente e corpo, pode-se subestimar a influência das emoções nas capacidades cognitivas e na tomada de decisões.

A abordagem proposta por Damásio destaca a importância das emoções na perceção da realidade pelos seres humanos. Ele argumenta que as emoções são respostas corporais automáticas que desempenham um papel capital na tomada de decisão e na formação da consciência. No caso dos défices cognitivos após um AVC, compreender as emoções e seu impacto na capacidade de raciocínio e tomada de decisões torna-se fundamental, mas complexo.

PAPEL DO ESPECIALISTA

Um especialista em Neurociências, Neuropsicologia e Psicologia Clínica tem um papel precioso nesse contexto. Só um profissional especializado e altamente treinado nas áreas abordadas tem o saber e as competências necessárias para avaliar e reabilitar os défices cognitivos e alterações emocionais com que um individuo é confrontado após um AVC.

Existem vários recursos médicos para avaliar as zonas cérebro afetadas após um acidente vascular cerebral, como a tomografia computorizada, a ressonância magnética e a ecografia, mas ao nível da preparação da reabilitação mental as avaliações neuropsicológicas são indispensáveis, já que com recurso a provas e testes de rastreio é possível identificar quais as áreas cognitivas afetadas e em que medida, assim como as mudanças emocionais diretamente relacionadas com a funcionalidade geral paciente e o seu potencial de recuperação.

ESTRATÉGIAS PERSONALIZADAS

Os clínicos de Psicologia e Neuropsicologia podem desenvolver estratégias de reabilitação personalizadas, que estimulem a recuperação tanto dos défices cognitivos quanto das alterações emocionais (como a depressão). Tal acontece com recurso a terapia cognitivo-comportamental, treino de competências sociais e emocionais, técnicas de regulação emocional, técnicas de relaxamento e suporte psicológico para lidar com as dificuldades emocionais pós-AVC.

Aceitar as mudanças emocionais após um AVC, a incapacidade cognitiva e funcional é fundamental para reconhecer a complexa interação entre mente e corpo e a influência das emoções e da nova realidade no longo processo de readequação ao novo contexto.

Este processo deverá ser orquestrado por uma equipa multidisciplinar, num Centro de Medicina de Reabilitação que conte com uma nobre e dedicada equipa de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, enfermeiros, terapeutas da fala, terapeutas ocupacionais, entre outros profissionais, para que se possa atingir o máximo potencial de reabilitação.

ABORDAGEM INTEGRATIVA

Na encruzilhada do conhecimento científico e da prática clínica, emerge a importância inegável da abordagem integrativa proposta por Damásio e da desenvoltura do profissional em Psicologia Clínica e Neuropsicologia que é a empatia. Já que a relação terapêutica é basilar para a avaliação, gestão e promoção de uma reabilitação adequada diante das complexas situações decorrentes do AVC.

Tais pilares unem-se harmoniosamente, desvendando caminhos para a compatibilização entre o equilíbrio cognitivo e emocional numa ótica de funcionalidade. Nessa sinfonia terapêutica, os especialistas tecem as suas sapiências numa tapeçaria de reflexão, estudo e ação na prestação dos melhores cuidados humanizados, na qual se revela a esperança renovada para aqueles que foram afetados por tais adversidades neurológicas.

Leia o artigo completo na edição de julhos-agosto 2023 (nº 340)