É a fase final da competição. Oito atletas estão alinhados na pista, os pés tensos contra os blocos de partida. Ouve-se: “Aos seus lugares”, “Prontos”, e então, uma fração de segundo antes do sinal sonoro, um atleta arranca, desqualificando-se da competição. É nestes momentos que um aspeto do comportamento quase sempre esquecido – a supressão da ação – resolve aparecer.
Um estudo publicado a 6 de Julho na revista Nature revela como uma área do cérebro nos impede de agirmos precipitadamente. “Descobrimos uma área do cérebro responsável por desencadear a ação e outra por suprimir esse impulso. E, além disso, conseguimos também provocar comportamentos impulsivos mediante a manipulação de neurónios nessas áreas”, afirmou o autor sénior do estudo, Joe Paton, Diretor do Programa de Neurociência do Champalimaud Research, em Portugal.
A equipa de Paton decidiu resolver um quebra-cabeças que emergiu, em parte, das Doenças de Parkinson e Huntington. Ambas se manifestam através de distúrbios do movimento, mas com sintomas completamente opostos. Enquanto os doentes com Huntington apresentam um quadro de movimentos involuntários e descontrolados, os doentes com Parkinson revelam problemas em dar início à ação. Curiosamente, ambas as doenças decorrem da disfunção da mesma região do cérebro: os gânglios basais. Como é que a mesma estrutura pode suportar funções contraditórias?
Segundo Paton, uma importante pista surgiu de estudos anteriores que identificaram a existência de dois circuitos principais nos gânglios basais: as vias direta e indireta. Acredita-se que enquanto a atividade da via direta promove o movimento, a via indireta suprime-o. No entanto, a forma como essa interação acontecia era, até agora, desconhecida.
USAR TEMPO PARA MEDIR A IMPULSIVIDADE
Paton e a sua equipa decidiram abordar o problema de forma original: em vez de, à semelhança de estudos anteriores, focarem a sua investigação nos gânglios basais durante o movimento, decidiram concentrar-se na supressão ativa da ação.
A equipa desenhou uma experiência em que os ratinhos tinham que determinar se um intervalo que separava dois sinais sonoros era superior ou inferior a 1,5 segundos. Se fosse mais curto, receberiam uma recompensa do lado esquerdo da caixa e, se fosse mais longo, a recompensa seria disponibilizada do lado direito.
“O fator crucial era que o ratinho tinha que ficar imóvel no período entre os dois sons”, explica Bruno Cruz, então aluno de doutoramento no laboratório. “O que implicava que, mesmo que o ratinho tivesse a certeza de que a marca dos 1,5 segundos já tinha passado, precisava suprimir o impulso para se mover até ouvir o segundo som e só depois podia ir buscar a recompensa”.
UMA MUDANÇA NA IMPULSIVIDADE
Os investigadores controlaram a atividade neural de ambas as vias – direta e indireta – enquanto o ratinho realizava esta tarefa. Observaram então que, tal como tinha acontecido em em estudos anteriores, os níveis de atividade foram semelhantes quando o ratinho estava em movimento, mas o mesmo não aconteceu durante o período de supressão da ação.
“Curiosamente, ao contrário da coativação que tanto nós, como outros investigadores, observaram durante o movimento, os padrões de atividade das duas vias durante o período de supressão de ação eram diferentes. A atividade da via indireta era no geral mais elevada e aumentava de forma contínua enquanto o ratinho aguardava pelo segundo som”, lembra Cruz.
Segundo os autores, esta observação sugere que a via indireta suporta, de forma flexível, os objetivos comportamentais do animal. “Com o passar do tempo, o ratinho fica mais confiante de que está numa situação de ‘intervalo longo’. E assim o seu impulso para se mover torna-se cada vez mais difícil de conter. É provável que o aumento contínuo na atividade da via indireta reflita essa luta interna”, explicou Cruz.
Inspirado por esta ideia, Cruz resolveu testar o efeito da inibição da via indireta. Essa manipulação fez com que os ratinhos manifestassem um comportamento impulsivo com maior frequência, aumentando significativamente o número de vezes em que avançavam prematuramente para a porta que seria recompensada. Com esta abordagem inovadora, a equipa descobriu efetivamente uma “mudança na impulsividade”.
“Esta descoberta tem amplas implicações”, refere Paton. “Para além da relevância óbvia para as Doenças de Parkinson e Huntington, também oferece uma oportunidade única para investigar condições relacionadas com o controlo de impulsos, como o vício ou as perturbações obsessivo-compulsivas”.
À PROCURA DA MOTIVAÇÃO PARA AGIR
A equipa identificou uma região do cérebro que suprime ativamente o impulso para agir, mas qual a origem desse impulso? Uma vez que se acredita que a via direta promove a ação, o primeiro suspeito foi a via direta dessa região. No entanto, este estudo demonstrou que o comportamento do ratinho praticamente não era afetado quando os investigadores inibiam essa via.
“Sabíamos que os ratinhos estavam a sentir um forte impulso para agir, na medida em que a remoção da inibição promovia uma ação impulsiva. Mas não ficou imediatamente claro onde o local da promoção da ação poderia ser. Para responder a essa pergunta, decidimos recorrer a modelos computacionais”, lembrou Paton.
“Os modelos matemáticos são extremamente úteis para dar sentido a sistemas complexos, como este”, acrescentou Gonçalo Guiomar, aluno de doutoramento do laboratório. “Tendo por base o conhecimento acumulado sobre os gânglios basais, formulamos matematicamente e testámos como o sistema processa as informações. Combinámos então a previsão do modelo com as evidências de estudos anteriores e identificámos um novo e promissor candidato: o estriado dorsomedial.”
A hipótese avançada pela equipa estava correta. A inibição de neurónios da via direta, nessa nova região, foi suficiente para alterar o comportamento dos ratinhos. “Ambas as regiões que estudámos estão localizadas numa parte dos gânglios basais designada estriado. A primeira área é responsável pelas chamadas funções sensório-motoras de ‘baixo nível’ e a segunda é dedicada às funções de ‘alto nível’, como planear”, explicou Guiomar.
DA AÇÃO À TENTAÇÃO E MAIS ALÉM
Os autores consideram que as suas descobertas contradizem a perceção geral que existe sobre o funcionamento dos gânglios basais, que é mais centralizada, e que o seu modelo oferece uma nova perspetiva.
“O nosso estudo indica que potencialmente existem múltiplos circuitos neurais no cérebro que estão em constante competição relativamente a qual será a próxima ação a realizar”, disse Paton. Esta informação é essencial para entender, de forma mais aprofundada, como este sistema funciona, o que por sua vez pode ser determinante para o tratamento de certos distúrbios do movimento, mas não fica por aqui”, disse Paton. “Observações da neurociência estão na base de muitas técnicas de aprendizagem automática e de IA. A ideia de que a tomada de decisões pode acontecer por meio da interação de vários circuitos paralelos, dentro do mesmo sistema, pode ser útil para desenvolver novas tipologias de sistemas inteligentes”, acrescentou.
Por fim, Paton sugere que talvez um dos aspetos mais singulares deste estudo seja a sua capacidade de aceder a experiências cognitivas internas. “A impulsividade, a tentação… estão entre os processos internos do cérebro mais fascinantes, porque refletem a nossa vida interior. Mas também são os mais difíceis de estudar, porque não têm muitos sinais exteriores que possamos medir. Foi desafiante configurar este novo método, mas agora temos uma poderosa ferramenta que nos permite investigar mecanismos internos, como aqueles envolvidos no processo de resistir ou ceder à tentação”, concluiu Paton.