O declínio do desejo sexual nas relações longas não se explica pelo envelhecimento, mas sim pela perda de novidade e espontaneidade. É importante perceber o fenómeno e encontrar a força motivacional para o contrariar e evitar a infelicidade.

Artigo da responsabilidade da Dra. Catarina Lucas. Psicóloga

É quase unânime que o declínio do desejo sexual começa a ocorrer após os primeiros anos de relação. Esta situação parece ser congruente com a maior parte dos estudos feitos sobre o tema e traz-nos um estado de desânimo e de alguma impotência. É uma situação muito frequente no dia a dia dos casais, sobretudo nas relações longas.

Talvez já tenha sentido o mesmo, passado por sentimentos de frustração, tristeza ou até culpabilização. Quando temos a sensação de já não sentir desejo com a mesma intensidade de outros tempos, temos tendência para pôr em causa os nossos sentimentos e até a nós mesmos. Questionamos a existência de um problema, pois achamos não ser possível não sentir desejo quando continuamos a amar aquela pessoa.

É também comum experienciar sentimentos de insegurança sobre o próprio valor ou sobre os sentimentos do outro, quando “não somos desejados”, chegando a equacionar-se a possibilidade de estar a ser traído, pois não entendemos como pode o outro amar sem desejar.

Desejamos mais o que não temos

A verdade é que, na maioria das vezes, não existe problema algum. “Como poderemos desejar o que já temos?”. Desejamos muito aquele telemóvel, passamos meses a sonhar com ele e até a juntar dinheiro para o comprar. Quando o compramos, ficamos eufóricos. Mas esse entusiasmo durará apenas uns dias, umas semanas talvez. Quando passamos a ter objeto, quando ele nos pertence, deixa de nos entusiasmar.

Com as relações acontece algo de semelhante, por muito estranho que possa parecer comparar as relações a objetos. Vamos deixando de desejar a partir do momento em que já sentimos o outro “como nosso”, em que já nos sentimos seguros na relação.

Perda de novidade

O declínio do desejo nas relações longas não se explica pelo envelhecimento, mas sim pela perda de novidade na relação em que estamos. Antes acreditava-se que o desejo era sempre espontâneo e que tinha sempre de ocorrer para que pudesse existir a relação sexual. Todavia, esta ideia começou a ser redutora e parecia não explicar na totalidade a resposta sexual, sobretudo nas relações longas.

É nestas relações longas que surgem as maiores queixas e é aqui que surge o desejo sexual responsivo, que se refere a um desejo que surge, não de modo espontâneo, mas sim como resposta a um estímulo ou investimento do outro. Ocorre quando, mesmo não existindo um desejo inicial ou espontâneo, a pessoa, consciente e deliberadamente, responde ao estímulo e envolve-se numa atividade sexual, surgindo o desejo já simultaneamente com a excitação.

Força motivacional

Nestas situações, a pessoa não sente ainda o desejo no momento em que se envolve, partindo de uma situação de neutralidade sexual, ou seja, o desejo só surge no decorrer do envolvimento e após o estímulo ou investimento do outro.

Sendo pouco espontâneo e mais intencional, este envolvimento permite um conjunto de recompensas, como intimidade, compromisso, disponibilidade ou afeto. A necessidade de ter estas coisas no nosso dia a dia sobrepõe-se, muitas vezes, à própria experiência e gratificação física e funciona como força motivacional.

Isto não constitui um problema, desde que o casal compreenda esta dinâmica, tente lidar com ela de forma ajustada e não lhe provoque desconforto ou distanciamento.

É importante conhecer este mecanismo e saber como o gerir. Os anos de relação, a falta de novidade e a rotina são inimigos do desejo sexual. Contudo, não basta usar isto como “desculpa” para a ausência da sexualidade.

Sentimentos contraditórios

O ser humano é ambivalente e incongruente em muitas coisas, nomeadamente nas relações amorosas. Cada um idealiza o seu parceiro com um conjunto de características por vezes contraditórias, gerando um dilema interno. Queremos a estabilidade, previsibilidade e sentimento de pertença, o que nos leva a entrar em relações de continuidade e de exclusividade. Contudo, queremos também a novidade, a surpresa e o diferente. E esta segunda necessidade pode colidir com a primeira.

Queremos criar laços afetivos, estáveis, seguros e previsíveis, mas não queremos abdicar da mudança, do mistério e do entusiasmo que o desconhecido proporciona.

Quando surge o romantismo trazido pelo amor, o desejo tende a diminuir. Aquilo que potencia o amor, tende a atenuar o desejo. Aquelas coisas que no amor rejeitamos são bem recebidas pelo desejo, nomeadamente o desconhecido, o incerto, a posse, alguma agressividade, o domínio ou até mesmo o ciúme. O desejo e a sexualidade têm um lado primitivo e instintivo.

Negociação inconsciente

A organização das sociedades ocidentais assenta maioritariamente nas relações de exclusividade, impondo a uma mesma relação a necessidade de estabilidade e de novidade, sendo isto muito exigente. É ter tudo numa mesma relação, com uma mesma pessoa e durante muitos anos. Numa fase inicial, parece mais fácil consegui-lo, embora isto possa ser bastante ilusório. É verdade que temos a novidade e o mistério, mas temos também níveis altos de incerteza e insegurança sobre o futuro em conjunto e sobre os sentimentos.

À medida que a relação evolui, tendemos a torná-la mais segura e mais previsível. Em última instância, ninguém aguenta para sempre as “borboletas na barriga” que trazem consigo incertezas e inseguranças. Mas isto faz também com que perca intensidade.

Inconscientemente, negociamos: trocamos algum entusiasmo por alguma segurança, mas a longo prazo, percebemos como esta troca pode ser fatal.

Prevenir a traição

A estabilidade pode “matar a chama”. É esta diminuição da novidade, do entusiasmo e da paixão que nos leva, muitas vezes, à infidelidade. É um não querer abdicar da estabilidade, mas um também não querer deixar de sentir a paixão e a novidade.

Quando traímos, nem sempre vamos em busca “do que não temos em casa”, vamos em busca do risco, do perigo, da imprevisibilidade e da adrenalina que isso nos provoca.

É, por isso, importante perceber que não devemos ficar “sentados” à espera que o desejo surja, já que pode surgir apenas esporadicamente. É preciso criar momentos, espaços e tempos para que a sexualidade possa ocorrer, seja de modo mais espontâneo, seja de forma mais responsiva.

Artigo publicado na edição de julho/agosto 2021 (nº 318)