Como pediatra, vejo todos os dias o quanto evoluímos nos últimos 30 anos, em termos de saúde infantil. Mas também vejo, com olhos no futuro, o que ainda falta fazer.

Artigo da responsabilidade do Dr. João Rio Martins. Pediatra e neonatologista

 

Quando nasci, nos anos 80, era comum ver crianças com sarampo, poliomielite ou rubéola. A mortalidade infantil era quase o dobro da atual e a ideia de que os pais podiam pesquisar sintomas no “Dr. Google” era ficção científica.

Hoje, sou pediatra, pai e parte de uma nova geração de médicos. Uma geração que cresceu a ver a medicina transformar-se de forma brutal e acelerada, muitas vezes a reboque dos avanços tecnológicos, outras vezes apesar deles. E esta revolução fez-se notar de forma especial na saúde infantil. E nem tudo mudou para melhor.

VACINAS: O IMPACTO INVISÍVEL DE UM SUCESSO EXTRAORDINÁRIO

Se há algo que moldou a saúde nas últimas décadas foram as vacinas. Um dos maiores sucessos da medicina moderna, que se tornou tão eficaz que começou a parecer desnecessário. É o paradoxo da prevenção: como já não vemos as doenças que as vacinas evitam, instala-se a dúvida, ou pior, a desconfiança.

Nos últimos 30 anos, o Programa Nacional de Vacinação tornou-se mais completo e seguro. Foram incluídas vacinas contra doenças como a hepatite B, o HPV, o rotavírus ou o meningococo B, reduzindo drasticamente a mortalidade e as sequelas graves destas doenças.

Mas, ao mesmo tempo, nasceu também a era da (des)informação – e com ela, movimentos antivacinas alimentados por mitos e medos infundados. O que antes era um consenso científico, agora precisa de ser explicado, defendido, muitas vezes até à exaustão. Hoje em dia, o combate à desinformação é tão importante como a vacina em si.

ALEITAMENTO E ALIMENTAÇÃO: MENOS DOGMA, MAIS CIÊNCIA

A forma como vemos a alimentação infantil mudou muito em 30 anos. Passámos de uma abordagem rígida e cheia de regras para uma mais individualizada, informada e respeitadora do ritmo da criança e da família. Hoje, falamos de baby-led weaning, de alimentação responsiva, de autonomia à mesa. Falamos menos de colherzinhas e papas trituradas e mais de experiência, texturas e de relação saudável com a comida.

Durante muito tempo, acreditou-se que o leite artificial era tão bom – ou até melhor – do que o leite materno. As campanhas publicitárias, a pressão hospitalar e a falsa ideia de modernidade empurraram muitas mães para fórmulas que prometiam nutrição “cientificamente equilibrada”, enquanto o leite materno era visto como ultrapassado.

Hoje, o paradigma mudou. O aleitamento materno é a referência de ouro – e conhecemos, mais do que nunca, os seus benefícios. Mas também aprendemos a não culpar, a não forçar, a respeitar o percurso de cada mãe e de cada bebé. Menos pressões, menos culpa. Mais apoio, mais empatia. Porque alimentar não é só nutrir – é criar vínculo, é cuidar.

SONO E SEGURANÇA: NOVOS OLHARES SOBRE VELHAS ROTINAS

Dormir de barriga para cima. Sem almofada. No berço, no mesmo quarto dos pais. Parece básico? Nem sempre foi. A síndrome da morte súbita do lactente continua a ser um medo real, mas o conhecimento sobre sono infantil evoluiu imenso. E com ele, as campanhas de prevenção e segurança. Hoje, temos guidelines claras sobre como reduzir riscos, mas continuamos a lutar contra a herança de hábitos antigos e conselhos bem-intencionados, mas desatualizados.

A segurança infantil estendeu-se também ao uso de cadeirinhas no carro, às grades nas camas, aos protetores de tomada. À prevenção de afogamentos, intoxicações e quedas. Muitas dessas medidas salvaram milhares de vidas, mesmo que nunca o saibamos.

TECNOLOGIA: ENTRE A SALVAÇÃO E O VENENO

A tecnologia tem sido a estrela das últimas décadas – e também a vilã. Trouxe-nos avanços impressionantes no diagnóstico das doenças, no acompanhamento à distância, no acesso à informação. Mas também introduziu ecrãs nas salas, tablets nas mochilas e vídeos no lugar de histórias contadas ao deitar.

O tempo de ecrã tornou-se um novo campo de batalha para os pais. As crianças de hoje vivem rodeadas de estímulos digitais, e a linha entre o que é educativo e que é tóxico é, muitas vezes, difícil de ver. O que sabemos é que a qualidade do conteúdo, o tempo de exposição e a supervisão dos adultos são fatores-chave – e que o maior perigo nem sempre está nos dispositivos, mas na ausência de tempo de qualidade, de presença, de conexão.

SAÚDE MENTAL INFANTIL: UM PROBLEMA REAL (E URGENTE)

Nas últimas três décadas, deixámos de achar que os problemas de saúde mental eram “coisas de adultos”. Ansiedade, depressão, dificuldades emocionais e comportamentais são hoje reconhecidos como reais e comuns nas crianças e adolescentes. E não, não é só porque “agora se fala mais” – é também porque há mais pressão, mais exigência, menos tempo, menos liberdade para brincar, para falhar, para ser criança.

A pandemia foi um acelerador brutal deste problema, mas não o criou. Apenas o expôs. A saúde mental infantil precisa de mais atenção, mais investimento, mais psicólogos nas escolas, mais espaço para os miúdos serem ouvidos. Porque uma criança que sofre em silêncio não vai “ultrapassar com o tempo” – vai carregar essa dor por muito tempo.

Leia o artigo completo na edição de maio 2025 (nº 360)