Acredito que a Saudade será um navegar pelas memórias que em algum momento nos fizeram felizes. Mas se assim é, então, porque será que o ser humano vive a Saudade de modo triste?

Artigo da responsabilidade de Pedro Quaresma da Silva, Life Coach

 

No Dia da Mãe, eu com o núcleo familiar mais próximo, fomos almoçar com ela e, em determinado momento, lembrei-me de pedir sugestões de temas para eu escrever; afinal, estava no meio do grupo de pessoas que melhor me conhece. Gosto de escrever e gosto principalmente de o fazer para que quem me lê conheça um pedaço de mim. Sugestões vindas de um contexto familiar, só poderiam ser boas e, para mim, bons desafios…

A primeira sugestão veio de um dos meus cunhados, o António, e foi Saudade o tema que ele sugeriu. E muito bem, devo acrescentar, já que este espécime de ser humano é-o, de facto, em toda a sua plenitude; e se a saudade existe, é seguramente alguém que pelo caminho vai sempre deixando marcas, memórias, momentos, frases, expressões, atitudes, que darão todo o sentido ao tema que escolheu. Esta sugestão teve em mim um enorme impacto, e a seguir vão os leitores perceber porquê.

REAÇÃO NOSTÁLGICA

Saudade, essa palavra exclusivamente portuguesa e sem tradução para mais nenhum idioma… Porque será?

Na opinião do meu muito querido amigo Eurico, a saudade fica com quem fica.

Quem fica vai sentir a falta, a distância, o desconhecimento do que sente quem parte, como vai ficar quem parte, etc… No entanto, esse sentimento (será que lhe posso chamar sentimento?), não se aplica só a pessoas, mas também a objetos, situações, animais, momentos, etc…

Segundo António Damásio, e de uma forma muito prática, sentimentos vêm do interior e as emoções revelam-se nas reações. Por isto, vou tratar a Saudade como uma emoção, uma reação nostálgica, que nos faz manter o passado presente. São as memórias que alimentam a saudade… as boas memórias, e daí a nostalgia.

Neste seguimento, permito-me pensar na utilidade do hipocampo como o nosso armazém das memórias, em articulação com a amígdala e o seu árduo labor na gestão das nossas emoções. Assim, Saudade poderá ser a emoção gerada pela manifestação de memórias positivas, de algo ou alguém que desapareceu; ou que não se pode de todo repetir; ou que não está ao nosso alcance imediato; ou que está de todo inalcançável.

MEMÓRIAS QUE NOS FIZERAM FELIZES

Mas deixando-me de compêndios e conceitos académicos, e falando da Saudade como uma emoção de praticamente todas as pessoas, sinto-me levado a abordar o coração de quem a sente. Sentirão as aves migratórias saudades, quando os seus filhos deixam o ninho e partem para a descoberta da vida? O que sentirão os animais da savana quando os predadores os privam das suas crias? E passando para nós, os seres humanos, o que sentirá uma mãe que perdeu um filho durante a gravidez?

Saudade é algo que nos apela à consciência da partida ou da perda e que, portanto, depende em grande escala da forma como nos posicionamos relativamente a essa “despedida”.

Como referi algumas linhas atrás, a saudade não se sente por todos ou por tudo o que saiu definitiva ou provisoriamente das nossas vidas… Saudade sente-se por quem ou por algo que nos deixou marcas positivas. Aproveitando o exemplo daquela Mãe que perde o filho na gravidez, apetece perguntar que saudades poderá ter. As saudades vão prender-se com as emoções sentidas, em conjunto com a partilha dos sinais vitais entre esta e os da criança que dentro de si albergava ao longo deste percurso. Ou seja, acredito que a Saudade será um navegar pelas memórias que em algum momento nos fizeram felizes.

Mas se assim é, então, porque será que o ser humano vive a Saudade de modo triste? Que lágrimas serão essas que a Saudade nos traz?

UMA QUESTÃO DE FOCO

Mais uma vez, como já tenho referido noutros textos, acredito que seja uma questão de foco… Como vou utilizar os momentos felizes que vivi? Se é temporário, hão de voltar; se é definitivo, fazem parte da minha história, do meu livro, do meu filme, da minha vida. Viver com a memória desses momentos não é viver agarrado a eles, como se de uma boia salva-vidas se tratasse, mas sim viver com o sorriso e os ensinamentos com que nos brindaram para as nossas vidas.

Quem parte fá-lo com o foco no que aí vem, mas quem fica mantém o foco nas memórias criadas e, por isso mesmo, de um modo geral, a Saudade fica com quem vê partir.

Saudade é um aperto no peito de quem quer e deixou de ter; é aquele abraço apertado que só aquela pessoa conseguia dar; aquele olhar terno de um cachorro que tão presente esteve na minha vida; o ronronar daquele gato traquina que tanto me entretinha nos momentos mais solitários; aquele objeto que me lembrava de alguém; tudo aquilo que desponta em nós uma lágrima de tantas coisas felizes.

Quem não recorda com saudade uma ou outra viagem que fez com alguém especial ou com um grupo de amigos? Quem não recorda com um sorriso memórias da sua infância? Quem não olha para um qualquer e foleiro objeto que nos traz à memória tantos e tão bons momentos que alguém nos proporcionou?

A Saudade está diretamente relacionada com os afetos: mais do que os afetos que sentimos, os afetos que a Saudade nos desperta.

SERÁ ISTO A SAUDADE?

Por toda esta reflexão, sou levado a pensar que a Saudade será alguma espécie de preguiça, que, ao invés de nos focar no que aí vem, mantém-nos presos a memórias do passado.

Das várias pessoas que desapareceram já da minha vida, do comboio em que viajo na minha existência, recordo o meu Pai que, em Janeiro de 2021, partiu numa nova demanda. Reparo agora, neste tempo desde essa data, que nunca me recordei tanto das suas expressões, visões e posturas como no pós-vida deste ser humano incrível. Mas mais ainda, nunca fiz disso tanto lema de vida como o faço agora, no sentido de aprender a viver melhor e refletir em todo o conhecimento que me foi deixado.

Sim, por vezes uma lágrima desliza abusivamente pelo meu rosto, quando me lembro do banco de pedra da nossa casa de Viana, e da forma como meigamente me dava palmadas no rosto ou no joelho quando sentado ao meu lado… É verdade que sim, mas não é menos verdade que essa lágrima corre no leito dos traços do meu rosto, morrendo na fonte das minhas palavras, regando de amor e emoção o que digo e a quem digo.

Será isto a Saudade?

Artigo publicado na edição de dezembro 2022 (nº 333)