Por que é que o cancro do pâncreas é tão letal? Um estudo agora publicado por investigadores da Fundação Champalimaud, em Lisboa, dá novas pistas sobre esta enigmática doença e representa um importante passo na luta contra ela. Os resultados do estudo não só permitem melhorar a monitorização da resposta dos doentes aos tratamentos, como poderão também prolongar a sua vida com qualidade.
As estatísticas do cancro do pâncreas são bastante modestas. Com uma taxa de sobrevivência a cinco anos de apenas 9%, a incidência da forma mais comum da doença, o adenocarcinoma ductal pancreático (ACDP) está a aumentar e prevê-se que se torne, até o ano 2030, a segunda causa de morte devida por cancro. A cirurgia continua a ser o tratamento mais eficaz, mas para 70-80% dos doentes não é uma opção viável. Perceber o cancro pancreático ao nível celular e subcelular é essencial para o desenvolvimento de terapias que permitam aos doentes ganhar tempo de vida.
Uma forma de prolongar a sobrevivência consiste na otimização da estratégia terapêutica, mudando rapidamente de tratamento quando este não é eficaz. Os tratamentos podem incluir uma combinação de radioterapia e de quimioterapia. Atualmente, a avaliação da qualidade da resposta dos doentes com ACDP às terapias baseia-se, tipicamente, na imagiologia e na medição dos níveis, no soro do sangue, de biomarcadores do cancro. Porém, ambos estes métodos apresentam falhas. As imagens de tomografia e de ressonância magnética (TAC e IRM) são incapazes de detetar pequenos tumores e de diferenciar os tumores benignos dos malignos, e mesmo o mais comprovado biomarcador do ACDP está ausente em 5-20% dos doentes — o que pode tornar os resultados pouco fiáveis.
De lixo a ouro
Um estudo publicado dia 9 de Setembro pelo Laboratório de Oncologia de Sistemas do Champalimaud Research fornece um avanço potencialmente decisivo na forma como é feita a avaliação da resposta aos tratamentos dos doentes com ACDP.
Bruno Costa-Silva, investigador principal e líder do estudo, começou por explorar, em 2008, o potencial das chamadas “vesículas extracelulares” (VE) na luta contra o cancro. “As VE são pequenos sacos libertados pelas células. São como mini-células, com a sua membrana lipídica, material genético, proteínas e açúcares. Durante muito tempo, foram consideradas ‘sacos de lixo’, cheias de resíduos que as células precisam de deitar fora. Mas, hoje em dia, o seu papel na transferência de mensagens entre as células é amplamente reconhecido.”
Dado que as plantas e as bactérias também libertam estas pequenas vesículas, as VE poderão ser uma das mais poderosas formas de comunicação nos organismos vivos. São produzidas por praticamente todas as células, incluindo as cancerosas. De facto, uma série de estudos tem mostrado que as VE segregadas tanto pelas células malignas como pelas saudáveis podem contribuir de forma substancial para a progressão tumoral.
Em estudos prévios, Costa-Silva mostrou que as VE que circulam no sangue podem ser usadas para detetar, prever e localizar as metástases do cancro pancreático. Até agora, porém, os investigadores têm utilizado medições isoladas das VE nos doentes para fins de prognóstico ou diagnóstico. “O nosso estudo é o primeiro a mostrar que, ao olharmos para a forma como as VE de doentes com cancro pancreático mudam ao longo do tempo, podemos determinar se os doentes estão a responder bem ao tratamento”, diz Costa-Silva.
Das ideias à descoberta
Quando Nuno Couto, oncologista da Fundação Champalimaud e primeiro autor do estudo, começou a estudar o potencial das VE na monitorização da resposta aos tratamentos, a equipa obteve um resultado surpreendente. “No início, pensámos que se tratava de um artefacto”, diz Couto. Mas tornou-se rapidamente evidente que as VE dos doentes com ACDP apresentavam níveis significativamente superiores de certas proteínas específicas em relação às VE de pessoas saudáveis.” Tratava-se de imunoglobulinas G (IgG), um tipo de molécula que faz parte do nosso sistema de defesa e que consegue encontrar e eliminar tanto os agentes patogénicos que penetram no organismo como as células cancerosas.
“O passo seguinte foi o mais desafiante”, confessa Couto. Para conseguirmos ver como os níveis dessas VE ‘positivas para as IgG’ nos doentes mudam ao longo de um tratamento, precisávamos de colher 20-30 amostras de sangue do mesmo doente ao longo de muitos meses. Sem a ajuda dos doentes, das enfermeiras, dos clínicos e dos patologistas do Centro Clínico Champalimaud, o estudo nunca teria sido possível.”
Graças a um método especial, desenvolvido no laboratório de Costa-Silva, capaz de rapidamente medir as populações de VE em minúsculas amostras de sangue, a equipa descobriu que as VE positivas para as IgG aumentam durante a progressão da doença e diminuem em resposta à terapia. Ou seja, essas VE representam um novo biomarcador, que alarga o repertório de ferramentas disponíveis para avaliar o estado do tumor, em particular para os muitos doentes cujas células tumorais não apresentam o biomarcador standard atual e para os quais as imagens de (TAC e IRM) são o único indicador da resposta ao tratamento.
“Ficámos muito entusiasmados ao ver uma correlação tão forte entre essas vesículas e a resposta à terapia”, diz Costa-Silva. “Temos agora uma ferramenta mais fiável para avaliar e melhorar a eficácia dos tratamentos do ACDP, bem como para reduzir os efeitos secundários, desnecessários e prejudiciais, dos tratamentos ineficazes.”
Da oncologia à biologia celular
“Estes resultados levaram-me a mudar o rumo do meu laboratório”, afirma Costa-Silva. “É impossível observá-los e não pensar na imunologia, isto é, em implicações mais latas em termos de sinalização celular.”
Os cientistas descobriram que as IgG se ligam às VE dos doentes com ACDP através de um conhecido antigénio do cancro. Por isso, suspeitam que as EV que apresentam esse antigénio sejam libertadas pelo próprio cancro, fazendo com que as IgG se liguem às VE em vez de se ligarem ao seu alvo designado: as células cancerosas. Desta forma, o tumor seria capaz de fugir ao arsenal do sistema imunitário lançando VE capazes de intercetar mísseis de IgG.
“Se os cancros muito agressivos, como o ACDP, utilizam as VE para desarmar o sistema imunitário, poderemos desenvolver novas terapias que tenham como alvo as EV derivadas do tumor, tornando assim esses cancros menos resistentes aos tratamentos”, faz notar Costa-Silva. A sua equipa está atualmente a tentar determinar se as proteínas que as VE apresentam noutros tipos de cancro também interagem com moléculas do sistema imunitário.
Segundo Costa-Silva, “é mesmo uma questão de fisiologia celular. Pode ser que os cancros usem as VE para perturbar o sistema imunitário, mas as VE também desempenham funções essenciais em situações onde não há cancro. Uma vez libertadas por uma célula, as proteínas presentes à superfície das VE interagem com outras proteínas, regulando a capacidade destas últimas interagirem, por sua vez, com alvos celulares e de provocar uma cascata de efeitos noutras células. Estamos muito interessados em saber mais acerca dessas interações e sobre o funcionamento das VE enquanto reguladoras da sinalização celular.”
“Ainda há muitas coisas que não sabemos sobre a comunicação das células entre si”, acrescenta Costa-Silva. Se conseguirmos perceber a linguagem das células e descodificar a forma como as VE regulam a atividade das moléculas envolvidas nos processos fisiológicos e patológicos, vamos poder utilizar esse conhecimento para lidar com um amplo leque de problemas, das doenças autoimmunes às perturbações ligadas ao envelhecimento. Isto é só o começo.”