O momento do diagnóstico de uma doença genética rara, crónica, degenerativa, sem cura e que encurta o tempo de vida, é assustador. Focamo-nos nas coisas que estão fora do nosso alcance: alterar o passado, corrigir o DNA ou inventar uma cura milagrosa. O sentimento de impotência é avassalador. Mas, aos poucos, vamos percebendo que há sempre alguma coisa a fazer.

Artigo da responsabilidade da Dra. Joana Roque, vice-presidente da Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ) 

 

A fibrose quística (FQ) é uma dessas doenças genéticas raras. Ocorre pela mutação de um único gene – o gene CFTR – que codifica uma única proteína – a proteína CFTR –, a qual funciona como um canal de iões à superfície das células. Para que a doença se manifeste, estas mutações têm de ser herdadas tanto do pai como da mãe.

Quando esta proteína se encontra ausente ou disfuncionante, as secreções corporais ficam mais espessas. Apesar de apresentar múltiplos sintomas diferentes, é nos pulmões, no fígado e no pâncreas que a doença se manifesta com maior gravidade.

Manifestações da doença

Nos pulmões, as secreções viscosas são propícias ao crescimento de diversas bactérias e fungos, que levam ao desenvolvimento de infeções respiratórias múltiplas e consecutivas que, aos poucos, vão destruindo o pulmão, havendo, na maior parte dos casos, necessidade de realizar transplante bipulmonar.

Algo semelhante ocorre no pâncreas: as secreções espessas bloqueiam os pequenos ductos, impedindo a saída das enzimas necessárias à digestão dos alimentos. Na grande maioria dos pacientes, existe uma maior dificuldade em absorver os nutrientes, o que representa um risco acrescido de desnutrição.

Muito pode ser feito

Apesar de ainda não existir uma cura definitiva para a doença, há muito a fazer. Na verdade, a esperança média de vida da FQ tem vindo a aumentar de forma exponencial nos últimos anos, aproximando-se, agora, dos 40 anos de idade. Este aumento resultou de uma evolução importante na disponibilidade, qualidade e abrangência dos antibióticos, do aparecimento de medicamentos que contêm enzimas digestivas, de diagnósticos cada vez mais precoces, de cuidados de fisioterapia diários e de fatores relacionados com estilos de vida e ambiente. A soma de pequenos ganhos permite maximizar o estado de saúde.

Na era da inovação terapêutica, com o surgimento dos novos medicamentos dirigidos à causa da FQ – os moduladores do CFTR – e com a esperança de uma cura definitiva através da terapia genética, garantir que os pacientes se encontram nas melhores condições clínicas possíveis é essencial.

Uma das melhores armas

Adotar comportamentos saudáveis e investir na saúde continua a ser importante, mesmo na presença de uma doença crónica como esta.

A nutrição é uma das melhores armas que podemos ter. Uma correta nutrição influencia positivamente o prognóstico da doença: diminui o número de infeções respiratórias anuais, diminui o tempo de recuperação dessas infeções, ao suportar a resposta imunitária, e aumenta a sobrevida.

No caso da FQ, a dificuldade em absorver os nutrientes, faz com que, estes pacientes, tenham de ingerir uma quantidade consideravelmente superior de calorias em relação à população geral, principalmente à conta das gorduras e das proteínas. Pode parecer simples, mas não é, principalmente nas crianças.

Calorias saudáveis

Aumentar as calorias diárias, muitas vezes é interpretado como aumentar a ingestão de gorduras através de fritos, hidratos de carbono e alimentos processados. Mas, também na FQ, há que optar por calorias saudáveis, alimentos interessantes e equilibrados, refeições cozinhadas e preparadas em família, não descurando a ingestão de vitaminas e minerais.

Outra das dificuldades sentidas está relacionada com as diferentes necessidades nutricionais dentro do mesmo agregado familiar. Na presença de uma criança ou adulto com FQ, que necessita de ingerir mais calorias, duas coisas podem acontecer: o paciente come uma refeição diferente do restante agregado familiar ou todos comem a mesma refeição hipercalórica. Nenhum destes caminhos é o ideal. O acompanhamento por um nutricionista especializado tem, aqui, um papel central no auxílio de todo o agregado familiar na confeção de refeições partilhadas, capazes de responderem positivamente às necessidades nutricionais de todos.

Relação positiva com a alimentação

Uma relação positiva com a alimentação é central, principalmente quando falamos da criança. Como sabemos, nem sempre é uma tarefa fácil. O apetite das crianças varia muito ao longo dos anos e algumas rejeitam alimentos específicos, criando conflitos à hora das refeições. As crianças com FQ têm, por um lado, que ingerir mais calorias por dia, mas apresentam menos apetite, por outro, principalmente nos períodos de exacerbação pulmonar. Isto cria uma dificuldade adicional.

O conflito à mesa nunca é solução. Há que envolver a criança, desde o início, na preparação da refeição, desde o momento da escolha dos ingredientes, à preparação dos mesmos, com tarefas adaptadas à idade, até à refeição em si.

Devem ser escolhidos alimentos com elevada densidade calórica em que, numa pequena porção, sejam ingeridas bastantes calorias, diminuindo a necessidade de aumentar o volume de alimentos, aumentando apenas a qualidade dos mesmos.

Receitas para toda a família

Foi no sentido de auxiliar as famílias e os pacientes que a Associação Nacional de Fibrose Quística (ANFQ) se aliou a duas nutricionistas, a Dra. Inês Asseiceira e a Dra. Margarida Ferro, e, em coautoria, lançou o livro “Nutrição na Fibrose Quística – Livro de Receitas para Toda a Família”.

O livro desmistifica as necessidades nutricionais específicas destes pacientes, identificando alimentos nutricionalmente interessantes e dando dicas para aumentar, no prato do paciente, o valor energético de uma refeição partilhada por todos. Para além disso, sugere receitas e menus diários para necessidades calóricas crescentes.

Esperança redobrada

Todos nós temos diferentes desafios. Escolhermos os nossos comportamentos, o nosso estilo de vida, está ao nosso alcance. É algo que podemos fazer.

Aliar uma nutrição correta e adaptada a uma boa ingestão hídrica e à realização diária de exercício físico é determinante na saúde de todos, em particular dos pacientes com FQ. Tão determinante como o cumprimento de todos os tratamentos prescritos.

O desenvolvimento de novos medicamentos para a FQ veio trazer uma esperança redobrada para cerca de 80% dos pacientes em Portugal, que aguardam pelo acesso aos mesmos. Importa que estes medicamentos sejam iniciados atempadamente, em pacientes ainda saudáveis.

Nutrição, exercício físico, acompanhamento médico, cumprimento da terapêutica e acesso precoce à inovação. São estas as sinergias necessárias para mudar o paradigma e o futuro da fibrose quística.

O diagnóstico desta e de outras doenças é difícil. Mas não nos retira a possibilidade de escolha. Da impotência podemos passar à ação. Se estivermos atentos, há sempre alguma coisa ao nosso alcance. Há sempre algo que podemos fazer em prol da nossa saúde.

Leia o artigo completo na edição de junho 2021 (nº 317)