A dor de cabeça afeta quase 2 milhões de portugueses, mas permanece na sombra, desvalorizada e ignorada. A maioria destas pessoas enfrenta a dor sem diagnóstico adequado, sem tratamento eficaz, sem esperança de alívio.
Artigo da responsabilidade da Prof.ª Dra. Raquel Gil-Gouveia. Neurologista
Portugal é um país de contrastes, onde a beleza da paisagem, o clima ameno e quente e o ritmo acolhedor do estilo de vida escondem, muitas vezes, sofrimentos silenciosos. As dores de cabeça, dores que muitos carregam, são invisíveis, mas frequentemente esmagadoras. É curioso como um problema tão comum, que afeta quase 2 milhões de portugueses, permanece na sombra, desvalorizado e ignorado. A enxaqueca, em particular, é a patologia neurológica mais incapacitante, sendo a principal causa de anos vividos com incapacidade nas pessoas com menos de 50 anos, incluindo crianças e adolescentes, mas é também uma das mais negligenciadas.
Os números impressionam, mas o impacto real está nas vidas de quem sofre. E, no entanto, a maioria destas pessoas enfrenta a dor sem diagnóstico adequado, sem tratamento eficaz, sem esperança de alívio. É como se o mundo lhes tivesse dito que a sua dor não importa, que é apenas mais um fardo a carregar em silêncio.
SOFRIMENTO DESVALORIZADO
É na adolescência ou na juventude a altura em que habitualmente as crises de enxaqueca começam a marcar presença. A princípio, talvez sejam vistas como algo passageiro, consequência do stress ou de noites mal dormidas. Mas, com o tempo, é habitual tornarem-se mais frequentes, mais intensas, mais incapacitantes. Vão progressivamente roubando qualidade de vida, tempo de vida útil. A sua sombra vai criando corpo nas vidas de pessoas que em tudo parecem saudáveis, fora quando as crises as eclipsam da existência.
Um problema é que o sistema de saúde não está preparado para receber essas pessoas. No contacto inicial com os cuidados primários, o sofrimento é frequentemente desvalorizado. Falta formação aos médicos para compreenderem a gravidade da situação. Falta de capacidade de quem sofre de devidamente valorizar e transmitir o seu sofrimento – porque passa. Não deve ser nada. Não é um tumor. Não vou morrer disto. É só uma dor de cabeça… Muitas vezes, o doente é enviado para casa com analgésicos genéricos, que pouco ou nada fazem para aliviar a dor.
CICLO FRUSTRANTE
E assim começa um ciclo frustrante: as coisas pioram, o doente procura ajuda, mas não encontra soluções. No início verificam os óculos, não vá ser da vista. A dor, na testa ou nariz, até pode ser sinusite. Como não é sinusite? Talvez seja do pescoço, muitas vezes doí-me o pescoço. Sessões de massagem, osteopatia, acupuntura… Até ajuda. Só que não… Alimentos, alergias, estilos de vida, stress, hormonas… Doutor, já tentei tudo. De onde vem esta maldita dor, que não me larga? Talvez seja melhor fazer um exame à cabeça… Passam-se anos, às vezes décadas, e procuras de causas, de explicações, muitas vezes sem nunca ter acesso a medicação específica. E as coisas vão piorando…
Em Portugal, 60% dos doentes consultaram, pelo menos, dois médicos antes de obter o diagnóstico, e 20% procuraram mais de quatro… Nalguns casos, até que chegue a uma consulta especializada, o processo leva anos ou mesmo décadas, anos a viver com uma condição que, em crises severas, leva à incapacidade e inação total. Anos marcados por ausências no trabalho, por instantes preciosos arrancados ao convívio familiar, por uma incapacidade cruel de estar presente nos momentos que importam. Dias que escorrem como areia, enquanto eventos sociais significativos se desenrolam à distância, e noites intermináveis em que o único desejo é que a dor, teimosa e implacável, finalmente dê lugar à paz.
ESPERANÇA, RESERVADA A POUCOS
Nos últimos anos, deram-se passos gigantescos no tratamento da enxaqueca, trazendo novas opções, mais eficazes e específicas. Mas a verdade em Portugal é cruel: as portas para esses tratamentos estão abertas apenas para um número ínfimo das pessoas que deles necessitam.
Entre um a dois milhões de pessoas vivem com enxaquecas, uma condição que não apenas rouba tempo de vida, mas também escancara as fragilidades de um sistema de saúde sobrecarregado. Dessas, cerca de 10% precisariam de acompanhamento neurológico, enquanto apenas 1% – algo entre 15 a 20 mil pessoas – necessitariam de cuidados especializados em cefaleias.
Agora, imaginemos que apenas metade deste pequeno grupo seleto tenha indicação real para os tratamentos mais avançados. Ainda assim, nos últimos anos, o acesso efetivo a essas terapias tem sido garantido a apenas algumas centenas – cerca de 300 pessoas. Um número que, à primeira vista, choca pela sua pequenez, mas que revela algo muito mais profundo: a distância abismal entre a necessidade e a realidade.
Esta lacuna dolorosa é, em grande parte, ditada pela insuficiência de consultas especializadas, cuja oferta cobre meros 13% da procura, mesmo considerando a oferta dos centros privados. Esta solução continua limitada para muitos, já que, no setor privado, não existe acesso gratuito às terapias específicas. Uma realidade que transforma a busca por alívio numa jornada marcada por barreiras e desigualdades, onde o direito ao tratamento se torna um privilégio de poucos.
Enquanto isso, a maioria dos que precisam permanece presa a tratamentos comprovadamente inadequados, relegados a observar, à distância, as terapias mais recentes como algo inalcançável – uma dádiva restrita àqueles que conseguem atravessar o estreito funil de consultas especializadas no SNS.
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