As doenças reumáticas mudaram completamente a sua apresentação e as suas consequências nos últimos 40 anos. O panorama de ver doentes reumáticos acamados em enfermarias de Reumatologia ou de ver macas e cadeiras de rodas a circular em consultas de Reumatologia é hoje, felizmente, muito raro ou inexistente.

Artigo da responsabilidade do Dr. Augusto Faustino Reumatologista. Presidente Instituto Português de Reumatologia

 

Para a mudança de paradigma acima descrita, muito contribuíram vários aspetos:

1. MUDANÇA DO CONCEITO DE “REUMÁTICO” PARA DOENÇA REUMÁTICA

Ainda muito difundida e enraizada está a ideia de que uma pessoa “sofre de reumático” quando surge com dores, deformações ou com incapacidade num qualquer local do aparelho locomotor (conjunto das estruturas que nos permitem movimentar, basicamente constituído por ossos, músculos e articulações).

É fundamental compreender que não existe reumático nem reumatismo: existem é múltiplas e variadas (algumas centenas) de doenças reumáticas (DR), todas elas com significado, importância, gravidade e tratamento diferentes.

De uma forma genérica, DR são todas as doenças e alterações funcionais do aparelho locomotor (musculoesquelético), incluindo doenças sistémicas, de causa não-traumática, compreendendo mais de 200 entidades distintas.

O reumatologista é o médico especialista a quem a Ordem dos Médicos reconhece diferenciação, competência, conhecimento (teórico e prático) e experiência para abordar as DR.

Acontece que estas doenças manifestam-se de uma forma repetitiva e semelhante entre si, basicamente através de sintomas como a dor, a dificuldade ou incapacidade para realizar tarefas (incapacidade funcional) e, só mais tardiamente (e em algumas doenças reumáticas), com deformações. Este facto fez com que se generalizasse ao conjunto destas manifestações de doença reumática o termo “reumático”.

O doente terá de compreender que o facto de ter um sintoma semelhante ao de outra pessoa que conhece não implica que tenha a mesma DR e que, portanto, não se aplicam a si os medicamentos ou o prognóstico de outros, nem a semelhança de sintomas quer dizer que o seu caso seja tão grave como outros de que tenha conhecimento.

  1. IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO PRECOCE DE CADA PATOLOGIA REUMÁTICA

As consequências nefastas das DR (dor e incapacidade pela destruição das estruturas osteoarticulares) apenas ocorrem se a evolução natural destas DR não for contrariada por uma precoce e adequada intervenção terapêutica.

O reumatologista deverá incidir a sua preocupação em efetuar um diagnóstico precoce e o mais específico e concreto possível sobre a patologia reumática que aquele doente apresenta. Quanto mais precoce for efetuado o diagnóstico maior será a possibilidade de, pela adoção das mais adequadas medidas terapêuticas, se conseguir modificar a evolução da doença e prevenir a evolução para as fases mais destrutivas e invalidantes.

Um diagnóstico precoce em fases da doença em que predominam processos patogénicos reversíveis e ainda sem lesões estruturais irreversíveis permitirá devolver normalidade sintomática ao doente e a manutenção da sua capacidade funcionalidade intacta.

3. AUMENTO DA OFERTA DE REUMATOLOGIA EM PORTUGAL

Em apenas quatro décadas, passou-se da existência de três unidades de Reumatologia para quase 30 unidades (número sempre em atualização), aumentando a oferta especializada de Reumatologia em Hospitais do SNS de forma exponencial (atualmente, cerca de 150 especialistas prestando serviço no SNS).

Apesar desta ampliação, continuam a existir regiões desprovidas de assistência reumatológica (muito em especial o Alentejo), regiões em que o número de reumatologistas é manifestamente insuficiente, quer para as dimensões da população abrangida, quer para o desenvolvimento das múltiplas valências assistenciais, formativas e investigacionais ligadas à prática reumatológica de qualidade (como Trás-os-Montes, Beira Interior ou Algarve), bem como a ausência de Centros de Reumatologia em Hospitais Centrais fundamentais (nomeadamente Hospital de Santo António e Hospital Fernando da Fonseca) ou em Hospitais de áreas urbanas de grande densidade populacional (nomeadamente Guimarães, Matosinhos, Cascais e Setúbal).

Está documentado em trabalhos publicados que, quando tecnicamente correta e adequada, a intervenção do reumatologista nas DR é a mais eficaz (consegue modificar a evolução da doença) e a mais rentável (permite poupar gastos globais das DR em termos de terapêuticas e MCD desnecessários, mas sobretudo em termos de gastos indiretos – perda de produtividade e reformas antecipadas).

Torna-se, assim, necessário alertar a população em geral e as autoridades de Saúde para a relevância das DR e seus custos económicos e sociais, e para a necessidade imperiosa de intervir atempadamente na sua evolução, através das mais adequadas medidas médicas e terapêuticas.

4. UTILIZAÇÃO DE TÉCNICAS TERAPÊUTICAS ESPECIAIS

A ecografia do aparelho locomotor é hoje um instrumento fundamental na abordagem adequada ao doente reumático, tanto em termos de diagnóstico precoce (identificação de inflamação articular e periarticular, de forma fácil e acessível, permitindo a sua abordagem terapêutica), como de instrumento de concretização de vários procedimentos terapêuticos de forma ecoguiada, aumentando de forma significativa a sua eficiência (e reduzindo a sua morbilidade).

5. A CONFIRMAÇÃO DE QUE A INFLAMAÇÃO REPRESENTA UM PAPEL PATOGÉNICO FUNDAMENTAL

São diversas as evidências de que os fenómenos inflamatórios são preponderantes nas fases iniciais e agudizações de muitas DR, desempenhando a inflamação nestas fases precoces um papel fundamental na expressão clínica e no condicionar da evolução da doença. Nestas fases, a inflamação é persistente, motivando uma dor constante, mesmo em repouso, e de intensidade em regra elevada.

Por estas razões, nas fases inflamatórias iniciais das DR, existe a necessidade de terapêutica em permanência, embora tentando sempre usar a dose mínima eficaz – efetuar em cada momento a dose justa e eficaz, mas a menor possível, para garantir o controlo dos sintomas; envolver o doente na decisão terapêutica, colocando nas suas mãos o ajuste diário a fazer com a medicação, garantindo uma utilização racional de cada fármaco, sem sobredosagem ou subtratamento.

Tudo isto, tentando desmistificar medos sobre terapêutica, garantindo que é possível efetuar medicação em permanência e com segurança, desde que se respeitem a indicação adequada, a prevenção de principais fatores de risco, uma estratégia de uso de dose mínima eficaz e se assegure uma vigilância clínica e laboratorial adequada.

6. MELHOR COMPREENSÃO E MELHOR DECISÃO TERAPÊUTICA PARA “TRATAR A DOR”

“Tratar a dor”, para um reumatologista, deverá significar o mesmo que para qualquer outro médico, de qualquer Especialidade, em qualquer Consulta…

Sobretudo, não deverá significar dar medicamentos sucessivamente, numa ordem pré-determinada, até se conseguir matar o sintoma (matar o mensageiro…) e assim desperdiçar a ocasião de explorar esse sintoma e de retirar dele todas as informações que nos pode dar (tipo de dor, causa da dor e identificação de fatores moduladores da dor) para um tratamento mais adequado, visando sempre o sintoma, mas sobretudo a sua causa.

Por outro lado, não se deverá colocar o acento tónico no sintoma, mas sim no doente que o apresenta.

Assim, não deverá significar tratar a dor, mas sim compreender que existem muitos tipos de dor e que cada tipo de dor exige uma abordagem específica (dor mecânica, inflamatória, neuropática ou dor crónica central – nociplástica); e enquadrar a abordagem em cada doente específico, nas suas particularidades clinicas globais e em cada momento.

Leia o artigo completo na edição de outubro 2024 (nº 353)