A Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia está a comemorar 60 anos de existência, sempre em prol da saúde digestiva. É um bom momento para explicar o papel desta especialidade e os avanços mais recentes.

 

Artigo da responsabilidade do Prof. Rui Tato Marinho, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

 

Corria o ano de 1960 quando um conjunto de médicos, de várias especialidades e áreas de diferenciação, decidiram formar a Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia (SPG). O Ministério da Saúde (e Assistência) fora criado dois anos antes, em 1958. A SPG é agora uma Associação Científica de Utilidade Pública, sem fins lucrativos, tendo neste contexto várias missões a cumprir.

A especialidade de Gastrenterologia começou a diferenciar-se no século XIX, na Alemanha e na Áustria. Mas a primeira sociedade de Gastrenterologia do Mundo seria criada em 1897, nos Estados Unidos: The American Gastroenterological Association. Num tempo em que o Tempo corria mais devagar!

A NOSSA MISSÃO

O que é uma Sociedade Científica? É uma associação de profissionais de saúde, neste caso, na sua grande maioria, médicos especialistas em Gastrenterologia, uma das cerca de 50 especialidades reconhecidas pela Ordem dos Médicos.

Uma Sociedade Científica tem vários objetivos e missões a cumprir: promoção da investigação científica, organização de reuniões científicas, promover a informação dos profissionais de saúde, do público em geral  e dos decisores políticos. Uma das principais missões centra-se na promoção da melhoria dos cuidados de saúde para a população, que será sempre o centro da nossa atividade.

A SPG tem também como missão a partilha de conhecimentos entre os médicos da especialidade. É uma verdadeira Escola de Vida: a formação contínua é assegurada, em grande parte pelas Sociedades Científicas, pela partilha do conhecimento entre especialistas de várias gerações. E somos hoje 500 especialistas.

O GASTRENTEROLOGISTA

Quais são os órgãos principais do aparelho digestivo? Esófago, estômago, intestino delgado (inclui o duodeno), cólon e reto, ânus, fígado e vias biliares, vesícula biliar e pâncreas. Tantos para um fim comum.

A função do gastrenterologista – ou o “gastro” na nossa gíria – assenta em três pilares:

  • Execução de exames para observar por dentro o corpo humano, muitos deles aproximando-se da atividade de um cirurgião. São eles a endoscopia alta, para ver o esófago, estômago, duodeno; colonoscopia, para o cólon; cápsula endoscópica, para o intestino delgado; CPRE, para os canais do pâncreas e das vias biliares, entre outros. Atualmente, até se consegue realizar uma ecografia aos órgãos internos com um aparelho chamado ecoendoscópio (endoscopia e ecografia), com a possibilidade de realizar biopsias e fazer alguns tratamentos.
  • Por outro lado, lida com doenças graves, potencialmente mortais, como sejam os cancros digestivos e as doenças do fígado. Os cancros do aparelho digestivo representam 1/3 de todos os cancros dos portugueses, sendo responsáveis por 10% das mortes anuais. Um deles é o cancro mais frequente em termos de novos casos por ano, o cancro do cólon e reto, com pouco mais de 10.000 casos em 2018. Ou seja, na próxima década irão aparecer 100.000 novos casos. Três das entidades onde o gastrenterologista tem um papel vital estão no Top 10 da mortalidade em Portugal: cancro do estômago, cancro do cólon e doenças do fígado.
  • Por último, lidamos com outras doenças menos graves, mas que afetam milhões de pessoas (obstipação com 2 milhões, doença de refluxo com 3 milhões, síndroma do intestino irritável com 1 milhão) ou alguns milhares, como a doença de Crohn e a colite ulcerosa.

EXCELENTE ESPERANÇA MÉDIA DE VIDA

O primeiro presidente da SPG foi o Prof. Cascão de Anciães. Outros 26 se seguiram. Todos eles deram e receberam, contribuindo para que os portugueses tenham hoje uma das melhores ofertas europeias e mundiais no domínio das doenças do aparelho digestivo.

Um dos aspetos que ilustra o progresso do conhecimento médico é o facto que a esperança média de vida em Portugal ter aumentado, desde 1960, quase 20 anos, de 64 para 81,6 anos.

Temos hoje uma das melhores esperanças médias de vida do Mundo. Temos a quarta população do mundo com maior percentagem de população (22,7%) com mais de 65 anos.

Um dos aspetos que contribuiu para esta longevidade foi a criação e implementação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979, que gerou ganhos de saúde a todos os títulos notável. No ano 2000, foi classificado pela Organização Mundial de Saúde como o 12º melhor do Mundo, entre 191 países.

Dado as doenças que acima descrevemos, a atividade especializada do gastrenterologistas contribuiu, de forma bem marcada, para a excelente esperança média de vida dos portugueses, agora os nossos pais, avós e bisavós.

SUCESSO NA SAÚDE DIGESTIVA

Muita da atividade do gastrenterologista é centrada no diagnóstico, rastreio (deteção sem sintomas), tratamento e cura de muitas doenças graves e mortais.

A evolução da Gastrenterologia acompanha a evolução geral da sociedade em que vivemos: tecnologia, gestão, informática, biologia molecular, imunologia, virologia, bacteriologia, estatística, dados, epidemiologia, internet, publicação científica, facilidade de comunicação, etc.

E esta evolução tem sido notável. Salientaria duas áreas: a endoscopia digestiva e a área das doenças do fígado, a chamada hepatologia. A Sociedade de Portuguesa de Endoscopia Digestiva seria fundada em 1979 e o Núcleo de Hepatologia em 1983 (agora, Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado). São duas Sociedades com quem a SPG partilha o espaço e secretariado.

Durante estas seis décadas, a endoscopia tornou-se rotina, conseguindo observar praticamente toda a extensão dos 8 metros do aparelho digestivo com vários aparelhos (endoscópio, enteroscopia, cápsula endoscópica e colonoscopia). As vias biliares e os canais pancreáticos também se conseguem observar com um exame chamado CPRE.

Outras inovações na área da Radiologia permitem hoje uma maior eficiência: ecografia abdominal, TAC, ressonância magnética. Ou seja, temos hoje armas que permite ver com detalhe o interior do aparelho digestivo e os seus órgãos anexos, por dentro e por fora. Um aparelho semelhante a uma ecografia, chamado elastografia ou Fibroscan, permite em dois minutos, como que fosse magia, saber se alguém tem cirrose ou não, reduzindo o número de biopsias (com agulha espetada no fígado) em cerca de 90 por cento.

OBJETIVO: SALVAR VIDAS

Uma das doenças clássicas de há três décadas, a úlcera duodenal, deixou de o ser. De repouso, dieta e leite no passado, vários fármacos viriam a tornar esta entidade quase um não problema: cimetidina, ranitidina, inibidores da bomba de protões (omeprazol e os seus congéneres). A identificação de uma bactéria chamada Helicobacter pylori permitiu a sua cura e reduzir o grande problema de saúde que foi a úlcera duodenal e gástrica.

A intervenção na hemorragia digestiva (emissão de sangue pelas fezes e pelo vómito) tem sido cada vez maior: tratamento para as varizes que sangram, clips, eletrocoagulação, sprays, colas. O gastrenterologista tem hoje muitas armas para intervir e salvar vidas.

A intervenção nos cancros é cada vez maior, seja na prevenção, no diagnóstico, no tratamento ou na paliação. O paradigma é a importância do rastreio com a colonoscopia do cancro do cólon e do reto.

Nas doenças do fígado, os avanços são igualmente múltiplos: foram identificados cinco vírus (A, B, C, D, E) e produzidas vacinas para quatro deles (A, B, D, E). A vacina da hepatite B tem salvo muitas vidas. O transplante do fígado tornou-se hoje uma rotina, sendo Portugal um dos países que mais transplantes: cerca de 200-250 por ano. Quanto ao tratamento, foi conseguido o controlo da hepatite B e a cura da hepatite C, um dos maiores avanços da virologia moderna. É necessário ter presente que a epidemia do fígado gordo está à nossa porta: estima-se que um quarto da população mundial tenha esteatose hepática.

O avanço da microbiologia contribuiu sobremaneira para muitos destes avanços. A identificação do ADN em 1953 e a descoberta de algumas técnicas como o PCR (Polymerase Chain Reaction) permitiu conhecer muitos destes vírus e partir para a descoberta de curas e vacinas. Quem identificou o vírus da hepatite B e o Helicobacter foi agraciado com o Prémio Nobel em 1976 e em 2005, respetivamente. Qual o significado das cerca de 100 triliões de bactérias que temos no intestino e que connosco vivem em equilíbrio?

E DEPOIS DO ADEUS AO CORONAVÍRUS?

Com a pandemia de coronavírus, o País parou e deixaram de se fazer as 1000 colonoscopias que se realizavam num só dia. Sabemos que no espaço de um mês teremos o diagnóstico de 1500 novos casos de cancro digestivo, mais de metade correspondente a cancro do cólon.

A Gastrenterologia é hoje uma especialidade da maior relevância. Esta terrível pandemia veio chamar a atenção que o País não pode viver sem gastrenterologistas.

A saúde digestiva é, claramente, uma das componentes vitais da Moderna Saúde Pública, sendo da maior relevância insistir nos estilos de vida saudável, exercício físico, não fumar, não consumir álcool em excesso, comer frutas e vegetais e… tentar ser feliz!