Os animais veem o mundo de forma diferente, dependendo do seu estado reprodutivo e do quão famintos se sentem. Num estudo publicado na revista Nature, cientistas da Fundação Champalimaud, em Lisboa, apresentam um mapa do apetite no cérebro da mosca-da-fruta que criaram através de um método de microscopia único desenvolvido pelo seu grupo. Usando este mapa, a equipa identificou neurónios-chave que controlam o desejo por proteína durante a gravidez e em situações de restrição nutricional. Esta abordagem pode ser usada para descobrir como outros estados, por exemplo o sono, influenciam a função cerebral e a tomada de decisão.
Temos de admitir que, por mais tentadora que seja a ideia de começar o almoço por um belo bolo de chocolate, poucos seriam aqueles que fariam esta escolha. E, no entanto, no final da refeição, muitos escolheriam o mesmo bolo sem hesitar.
A explicação para este fenómeno prende-se com o facto do “estado interno” do corpo se encontrar em constante mudança: à hora do almoço, o corpo geralmente precisa de proteína, então o cérebro promove essa escolha alimentar específica. No entanto, depois da proteína ser ingerida, os carboidratos podem ser uma boa opção para garantir as reservas de gordura do corpo.
Mas os estados internos raramente são unidimensionais. Um indivíduo pode estar carente de vários nutrientes em simultâneo (como proteína e sal) ou até também estar grávida, um estado que acarreta o seu próprio conjunto de necessidades. Como é que o cérebro integra todos estes estados internos, que acontecem em paralelo, e controla o comportamento?
Um estudo publicado a 6 de julho último na Nature fornece uma nova visão sobre este complexo problema. “Mostrámos que a forma como o cérebro processa a entrada de inputs sensoriais depende dos animais estarem privados de certos nutrientes ou de estarem grávidas.” disse o autor principal do estudo, Carlos Ribeiro, investigador principal na Fundação Champalimaud, em Portugal. “Através deste trabalho, identificámos um princípio geral no qual os estados internos são integrados para moldar a função cerebral e a tomada de decisão. Além disso, a nova estratégia, baseada em microscopia, que desenvolvemos neste estudo, pode ser valiosa para a compreensão da base neural do comportamento, tanto no que respeita às escolhas alimentares, como de uma forma geral.”
Aventurando-se em território neural desconhecido
Para investigar como os estados internos moldam o comportamento, a equipa de Ribeiro concentrou-se numa região relativamente mal compreendida do cérebro da mosca-da-fruta chamada SEZ (do inglês subesophageal zone, em português, zona sub esofágica). Acredita-se que esta região desempenhe um papel crucial na escolha de alimentos, uma vez que recebe a maioria dos inputs de sabor e contém os neurónios motores que controlam a alimentação. No entanto, como esta região é composta principalmente por fibras neurais densamente emaranhadas, a sua subestrutura anatómica não se encontrava bem definida.
Para entender como funciona, a equipa decidiu criar um “atlas funcional” da SEZ. Por outras palavras, identificaram as subestruturas que compõem esta região e atribuíram funções específicas a cada uma. Para conseguirem atingir estes objetivos, Daniel Münch, principal autor do estudo, começou por colocar um repórter de atividade fluorescente em todos os neurónios do cérebro da mosca. Depois, pode realizar neuroimagem 3D em quatro grupos de moscas, cada um representando distintos estados internos.
“Queríamos entender como dois poderosos moduladores de apetite de proteína – privação de proteína e status reprodutivo – interagem no cérebro. Definimos quatro grupos experimentais: virgens totalmente alimentadas, virgens privadas de proteína, moscas acasaladas totalmente alimentadas, e moscas acasaladas privadas de proteína. E registamos a atividade neural na SEZ enquanto as moscas provavam sacarose, água e levedura (fonte de proteína natural da mosca)”, explicou Münch.
Um mapa do apetite
O atlas que a equipa criou consiste em 81 regiões que abrangem toda a SEZ. Estas regiões correspondem à maioria das áreas sensoriais e motoras descritas anteriormente na SEZ, e incluem também novas regiões nunca antes identificadas.
“O nosso atlas identificou algumas regiões conhecidas. Por exemplo, uma com a forma de uma banana, que recebe estímulos de neurónios sensoriais que estão localizados na probóscide (boca da mosca)”, referiu Münch. “Também descobrimos uma área em forma de asa à qual chamamos Borboleta Region, localizada na parte de trás da SEZ. Esta região acabou por, mais tarde, desempenhar um papel fundamental no controlo do apetite por proteínas.”
Além de identificar novas regiões, o atlas também revelou o efeito do estado interno na atividade neural, identificando a “região Borboleta” como capaz de controlar o apetite por proteína. As respostas à água e à sacarose pouco mudaram nos quatro grupos, já a dieta rica em proteína teve um efeito impressionante.
“Nos animais privados de proteína, a atividade provocada pela comida rica em proteína foi fortemente aumentada em grandes partes da SEZ. Por seu lado, o acasalamento, afetou principalmente a atividade nas regiões motoras da SEZ. Isto foi algo surpreendente, uma vez que tanto o acasalamento como a privação de proteína são conhecidos por aumentar o apetite por proteína e, por isso, não esperávamos encontrar padrões de resposta tão diferentes”, disse Münch.
Além destes resultados, os autores também testemunharam o efeito sinérgico que os estados internos combinados têm na atividade neural. “As fêmeas acasaladas e privadas de proteína tiveram a maior atividade nas regiões motoras da SEZ”, explicou Münch. “Isto significa que, embora esse par de estados internos coexistentes – privação de proteínas e gravidez – sejam processados em circuitos neurais distintos, acabam por convergir na mesma área e promover o apetite por proteínas”.
Manipular neurónios para induzir o desejo de proteína
A equipa identificou novas regiões na SEZ e caracterizou como diferentes gostos e estados internos influenciam a atividade neural nessas regiões. Mas como fizeram para conseguir apurar se essas áreas estavam realmente envolvidas no controlo da preferência alimentar?
“Foi então que nos focámos na recém-descoberta Região Borboleta, onde o sabor da proteína evocava uma atividade neural robusta”, disse Münch. “A nossa hipótese era que, se esta estivesse realmente envolvida neste comportamento, então poderíamos influenciar o apetite protéico ativando artificialmente os neurónios nesta região”.
Os investigadores alinharam o seu recém-criado atlas com outro atlas pré-existente que mapeia os padrões de inervação de grupos de neurónios. Tendo depois selecionado os neurónios na chamada região borboleta e ativaram-nos em moscas totalmente alimentadas, que normalmente preferem a sacarose à proteína. Esta manipulação resultou num aumento acentuado do apetite proteico.
“Sentimos que tínhamos fechado o círculo: da observação à função”, lembrou Münch. “Primeiro, observámos a preferência alimentar nos quatro grupos e identificámos que moscas privadas de proteína e acasaladas têm uma elevada preferência por proteína. De seguida, visualizámos a atividade neural na SEZ, criámos o atlas e identificámos novas regiões e confirmámos que uma dessas regiões está envolvida na geração do comportamento que observámos inicialmente ao manipular a sua atividade.”
“Em conclusão, a nossa abordagem permite identificar e fazer corresponder neurónios a comportamentos específicos, relacionados com a escolha de alimentos e potencialmente com outros comportamentos também”, acrescentou Ribeiro. “Seria difícil implementar a nossa abordagem em qualquer outro sistema que não na mosca-da-fruta. As ferramentas que temos hoje fazem deste modelo animal um sistema experimental incrível que nos permite dissecar como o cérebro funciona. Importa ainda referir que a SEZ é semelhante ao tronco cerebral dos vertebrados. Assim, os nossos resultados têm amplas implicações para a neurociência e podem inspirar estudos futuros que procurem fazer a ponte entre o mapeamento da atividade cerebral como um todo e a dissecação dos circuitos funcionais. Estes são tempos realmente entusiasmantes para se ser um neurocientista!”, conclui.