Um terço de todos os cancros são do aparelho digestivo. Anualmente, estes cancros são responsáveis por cerca de 10% das mortes. O que podemos fazer para alterar esta situação? Será que conseguimos melhorar a prevenção e/ou o diagnóstico precoce?

Artigo da responsabilidade do Dr. Pedro Narra de Figueiredo. Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

 

Quando falamos em cancro digestivo, falamos dos chamados “big five”, que incluem os cancros do esófago, estômago, intestino, fígado e pâncreas.

Em Portugal, um terço de todos os cancros são do aparelho digestivo. Anualmente, estes cancros são responsáveis por cerca de 10% das mortes, em que os cancros do estômago, do cólon e doenças do fígado são responsáveis por três das 10 causas principais de morte.

SERÃO ESTES NÚMEROS UMA FATALIDADE?

O que podemos fazer para alterar esta situação? Será que conseguimos melhorar a prevenção e/ou o diagnóstico precoce? Nalguns casos, tal é possível, noutros não estamos ainda nessa fase. A função dos médicos gastrenterologistas é fundamental no sentido de prevenir, diagnosticar e, nalguns casos, tratar estas doenças. A conjugação de esforços com outros especialistas – cirurgiões, radiologistas e oncologistas, entre outros – é da maior importância para conseguir alcançar o objetivo de melhor cuidar estes doentes.

EXEMPLO DE QUE É POSSÍVEL PREVENIR

O mais frequente dos “big five” é, sem dúvida, o cancro do intestino. Este constitui o exemplo paradigmático do cancro que é possível prevenir. Isto resulta do facto de o aparecimento deste tumor ser precedido, em muitos anos, por um tumor benigno, habitualmente chamado “pólipo”.

Se detetado precocemente, designadamente através da realização de colonoscopia, pode o pólipo ser removido sem necessidade de uma intervenção cirúrgica, ficando o doente curado e feita a prevenção do cancro do intestino.

Neste contexto, é fundamental que os programas de rastreio, dirigido às pessoas que não apresentam qualquer sintoma, sejam ativamente implementados no contexto da Medicina Geral e Familiar.

RECOMENDAÇÕES ATUAIS

As recomendações atuais vão no sentido de fazer o rastreio a partir dos 50 anos, havendo países em que essa idade recuou para os 45 anos, resultado do aumento dos casos de cancro do intestino detetados em idades mais jovens.

Deve salientar-se que pode ser necessário realizar uma colonoscopia antes dessa idade, caso apareçam sintomas como, por exemplo, presença de sangue nas fezes, alteração recente dos hábitos intestinais, dor abdominal, perda de peso, anemia. Também no caso de existir uma história familiar de cancro do intestino, pode ser necessário realizar a colonoscopia mais cedo.

DETETAR A HELICOBACTER PYLORI

Relativamente ao cancro do estômago, a perspetiva é um pouco diferente, dado que não é precedido, como no caso do intestino, por um pólipo. Os doentes devem estar particularmente atentos a alguns sintomas que possam surgir, designadamente dificuldade em fazer a digestão, sensação de enfartamento, perda de apetite, emagrecimento.

Neste caso, é fundamental realizar uma endoscopia digestiva alta, no contexto da qual é importante averiguar se há uma infeção do estômago pela bactéria Helicobacter pylori, reconhecidamente um agente cancerígeno.

Quando esta bactéria é detetada, deve ser eliminada através do recurso a um tratamento que envolve a utilização de, pelo menos, dois antibióticos, sendo depois necessário averiguar se a terapêutica foi eficaz, seja através de endoscopia digestiva alta, caso haja indicação, quer através de um teste respiratório que se realiza nos laboratórios de análises clínicas.

TABACO E ÁLCOOL

Ainda no tubo digestivo, o cancro do esófago é o menos frequente dos três e pode ocorrer como complicação rara da doença de refluxo gastro-esofágico ou em pessoas com hábitos tabágicos e alcoólicos acentuados.

Neste caso, o sintoma que chama a atenção para a possibilidade da sua existência é a dificuldade em engolir os alimentos, bem como o emagrecimento. Quando ocorrem estes sintomas, o exame a realizar é uma endoscopia digestiva alta. O prognóstico é habitualmente pouco animador, dado que o tumor é muitas vezes detetado numa fase já muito avançada, com poucas possibilidades de cura.

TENDÊNCIA DE AUMENTO

O cancro do fígado é um dos cancros que se espera que mais aumente nos próximos 30 anos, de um modo geral, com mau prognóstico. Está fortemente relacionado com a existência de cirrose hepática (estado de destruição da estrutura do fígado, com morte das células e aparecimento de cicatrizes).

Quem tem cirrose tem um risco muito elevado de vir a ter cancro do fígado ao fim de 10 anos. Pode evoluir durante muitos anos sem sintomas e é normalmente detetado numa avaliação clínica no Centro de Saúde, designadamente através da realização de uma ecografia abdominal.

Quando surgem sintomas, a doença pode estar já muito avançada. Podemos chamar a esta fase de cirrose descompensada, com ascite (“barriga de água”), olhos amarelos (icterícia), encefalopatia (alterações do comportamento), hemorragias (rotura de varizes do esófago), infeções graves e emagrecimento extremo.

Importa salientar as causas mais frequentes da cirrose hepática incluem os hábitos alcoólicos, a infeção pelo vírus da hepatite B e C e o fígado gordo. Esta última causa tem vindo a ganhar uma importância crescente e está muitas vezes relacionada com hábitos de vida pouco saudáveis.

DOENÇA COM MAU PROGNÓSTICO

O cancro do pâncreas é também um dos cancros que se espera que aumente nos próximos 30 anos, igualmente com muito mau prognóstico. Era, tradicionalmente, uma doença que aparecia em idades muito avançadas da vida, mas a verdade é que tem vindo a ser diagnosticado em idades mais jovens. O consumo excessivo de tabaco e álcool, obesidade, idade avançada e alguns quistos do pâncreas têm associado um risco aumentado de vir a desenvolver cancro.

Alguns sintomas deste cancro podem incluir olhos amarelos (icterícia), dor abdominal por vezes com irradiação para as costas, bem como alguns outros muito pouco específicos, como sejam a falta de apetite, cansaço e perda de peso.

Infelizmente, o diagnóstico é habitualmente tardio e não está disponível nenhum método de rastreio que permita fazer um diagnóstico precoce. O tratamento depende muito do estado em que se encontra o tumor na altura do diagnóstico.

Leia o artigo completo na edição de setembro 2023 (nº 341)