A cada novo ano, a não tão nova frase “ano novo, vida nova” é ouvida em festas, encontros e celebrações, como uma espécie de mantra que evoca a possibilidade de transformação e renovação. Esta ideia, que à primeira vista parece ser só benigna, otimista e cheia de esperança, pode – se não tivermos cuidado – tornar-se num fardo pesado.
Artigo da responsabilidade da Dra. Patrícia Câmara. Psicóloga/psicanalista. Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática
As resoluções de Ano Novo, que muitas vezes são vistas como compromissos para melhorar a vida, podem também ser sentidas como tomadas de consciência de impossibilidades ou dificuldades sobre as quais não se tem – ou se sente não se ter – controle. Esta tradição de vincular o tempo à mudança apresenta-se, então, mais complexa do que parecia, merecendo ser explorada.
Mas uma coisa é certa: para que o novo ano seja realmente novo, é imperativo que olhemos para dentro, num encontro connosco mesmos, a partir do qual podemos sonhar e desejar em maior liberdade. Podemos pedir boleia ao Ano Novo, mas se por dentro não nos renovarmos é provável que rapidamente tenhamos a sensação de que ficamos para trás.
UMA ESPÉCIE DE DEPURAÇÃO
Quando o dia 31 de dezembro se aproxima, a maioria de nós sente-se impelida a refletir sobre o que passou e a traçar metas para o que está por vir. O novo ano parece abrir a porta à esperança de se conseguir tudo aquilo que durante o ano não foi atingido; ou um portal, uma passagem, a partir do qual nos livramos de toda a toxicidade, dores e “pecados” que vivemos até aí. Uma espécie de depuração automática que permite guardar o que interessa e sacudir o que não faz falta, para, claro, no fundo, tornar o caminho mais leve e cheio de vida.
Não é de estranhar o tradicional banho em águas do mar no primeiro dia do ano, que é tão familiar a tantas culturas. Como me dizia uma vez um aluno, na passagem do ano, “saímos do mergulho que demos o ano inteiro e pomos a cabeça fora de água para inspirar e ganhar balanço para mergulhar novamente, mas com os pulmões cheios de ar fresco”.
Esta procura pela frescura do que é novo enche-nos da força necessária para irrigar de vida as artérias múltiplas daquilo que imaginamos poder encontrar à frente no caminho. Contudo, esta sensação de possibilidade e ressignificação está dependente daquilo que é a nossa perspetiva do que foi vivido e do que é necessário viver. Se não tivermos uma perspetiva realista, podemos tornar a esperança num inferno existencial.
PERSPETIVA REALISTA
Realista não é sem sonho ou sem desejo. É o contrário disso. É garantir que o que procuramos conseguir não esquece a importância da utopia como estrela-guia da vida. E, como sabemos, as estrelas não se agarram, porque encerradas na nossa mão perderiam o brilho próprio que as define e que precisamos para nos ver iluminados. Realista é um compromisso entre a aceitação do que se foi e se é capaz de fazer e aquilo que se quer tentar fazer novamente, mas de uma maneira diferente da que já foi feita.
Renovar os votos de compromisso com o futuro implica pensar por dentro naquilo que queremos ver melhorar. Quer aquilo que tenhamos como objetivo seja qualquer coisa mais externa, quer seja qualquer coisa mais interna.
Em todos os nossos movimentos, a renovação passa, quase sempre, pelo desejo de estender a vida o mais tempo possível e com a melhor qualidade possível e isso depende do que cada um de nós considera ser importante para o conseguir. E, claro, está também dependente da cultura em que estamos inseridos e daquilo que à época veicula, científica e socialmente, como a coisa certa a fazer.
CÍRCULO VICIOSO DE FRUSTRAÇÃO
Muitas vezes, ao estabelecermos resoluções, procuramos ir ao encontro daquilo que acreditamos que nos falta: um corpo mais saudável, um emprego melhor, relacionamentos mais satisfatórios. O que poderá ser importante, mas que com certeza não será suficiente se não for pensado com maior profundidade. Esta busca pela mudança de uma forma mais externalizada pode-nos levar a um círculo vicioso de frustração, onde, em vez de realmente evoluirmos, acabamos por repetir padrões antigos e sem sucesso, disfarçados de promessas novas.
Se é verdade que colocando metas mais realistas e exequíveis aos nossos objetivos de mudança mais externalizados será mais fácil atingi-los – como, por exemplo, definir quantos quilos se quer perder, que trabalho se gostaria de ter e que estratégias se pode adotar para lá chegar, quantos minutos por dia queremos andar ou quantas vezes por semana queremos fazer exercício físico; por outro lado, se estes objetivos não forem acompanhados de uma inscrição interna das motivações para os ter, a probabilidade de que não tenham continuidade no tempo é imensa. Muitas outras mudanças escondem as mudanças que vemos à superfície do que somos.
PARA QUE A MUDANÇA REALMENTE ACONTEÇA
Ver as nossas resoluções como uma oportunidade de ressignificação pode contribuir para que a mudança realmente aconteça. Olhar para dentro e refletir sobre o que podemos mudar em nós mesmos, na maneira como olhamos para nós e para o mundo é uma oportunidade para efetivamente ver para além do espelho.
Para que o Ano Novo traga uma vida nova, é fundamental um encontro íntimo e profundo connosco mesmos. É necessário parar para escutar o que não estamos a ouvir, longe dos ruídos que nos ensurdecem com os caminhos pré-determinados a seguir. É desse encontro que nasce a possibilidade de transformação com sucesso, aquela que nos impele para a certeza da relação autêntica com os outros como verdadeira forma de vida.
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