Os últimos dois anos foram muito conturbados para o setor da saúde. Foram-no, também, para cada um de nós. Dificilmente, seremos capazes de imaginar o que eles representaram para quem sofre de uma doença crónica, independentemente da sua etiologia, idade, severidade, ou grau de evolução.
Artigo da responsabilidade do Dr. Joaquim Brites, Presidente da Direção da APN – Associação Portuguesa de Neuromusculares
Ao longo dos últimos meses, todos os especialistas, e incluo, nestes, todos os que sabem muito de saúde e aqueles que, dela, pouco sabem mas muito comentam, referem a necessidade urgente de retomar as consultas de especialidade, as cirurgias em atraso, os rastreios oncológicos, os meios complementares de diagnóstico e terapêutica (MCDT) ou, resumidamente, todos os cuidados de saúde hospitalares e a normalização e, até, o reforço no acesso aos Cuidados de Saúde Primários.
Curiosamente, não ouvimos falar com a mesma assiduidade na urgência da retoma dos atos de MCDT que não foram realizados, nomeadamente nas terapias das quais depende a qualidade de vida de muitos doentes crónicos. Refiro-me à fisioterapia, hidroterapia, terapia ocupacional, terapia da fala e muitas outras. Esta, foi a área da saúde mais afetada. Segundo um Estudo publicado pela GFK e pelo Movimento Saúde em Dia, em outubro de 2021, com base em dados do Portal da Transparência, a diferença do número de atos praticados, em Medicina Física e Reabilitação, entre os períodos de Março de 2019 a Janeiro 2020 e Março 2020 a Janeiro 2021, foi superior a 15 milhões (-15.482.069). A maior diferença verificada em todo o estudo, nesta área. Até agora, pouco ou nada mudou.
Os doentes neuromusculares, um dos maiores grupos de doentes raros do mundo, assumem-se, enquanto doentes crónicos, como dos mais prejudicados pelo desinteresse e pela ausência de medidas concretas que contrariem estes números. Apresentando-se como doenças progressivas que, pela evolução dos seus efeitos, se tornam incapacitantes, tal como outras doenças neuro degenerativas, têm indicação permanente para um conjunto de terapias de manutenção e de reabilitação, por parte dos maiores especialistas em todo o mundo, incluindo alguns portugueses. A fisioterapia, funcional e respiratória, assim como outras terapias associadas, permite uma maior mobilidade e previne o aparecimento de contraturas que, normalmente, são irreversíveis. Imaginem pois, o que aconteceu ao longo dos últimos dois anos em que a maioria dos doentes não teve qualquer acompanhamento e que viu o seu direito ao tratamento interrompido de forma irremediável. E continuam à espera de respostas.
Há muito tempo que venho chamando à atenção para a necessidade de encontrar soluções. Depois de muitos casos, objeto de denúncia pública e largamente difundidos pela comunicação social, chegam-nos relatos de jovens que estão à beira de deixar de escrever, à mão e no computador, de executar algumas tarefas diárias e, até, de deixar de comer por não conseguirem agarrar em utensílios, como garfos ou colheres. Para além destes, muitos outros doentes crónicos têm mencionado a degradação do seu estado físico e reclamam atenção para a sua reabilitação.
No Estudo, atrás referido, 95% dos inquiridos consideram o apoio na fisioterapia e na fisiatria como a área prioritária de intervenção, no SNS. Ninguém os ouviu. Alguns meses depois, quando se começa a falar de alívio nas restrições impostas pela pandemia, continuo a não ouvir qualquer referência às sugestões apresentadas, e reforçadas pelo Movimento Saúde em Dia tais como, o alargamento dos horários de funcionamento dos hospitais e dos Centros de Saúde, agora renomeados para UCSP – Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados, por cerca de 91% dos participantes.
Lamentável, é o termo que me ocorre. A situação foi agravada pela pandemia, mas já era conhecida antes de março de 2020. Apesar das muitas reclamações, ninguém quis assumir qualquer responsabilidade pela degradação da condição física dos doentes crónicos. A primeira palavra deveria ser dos médicos fisiatras que, desde sempre, se refugiam na falta de condições, na falta de pessoal e no excesso de trabalho a que estão sujeitos em ambiente hospitalar. Por isso, recomendam que seja o médico de família a prescrever os tratamentos em clínicas convencionadas. Mesmo sabendo que estão a duplicar custos ao SNS. Mesmo sabendo que nem todos os utentes têm médico de família. Mesmo sabendo que os serviços convencionados não estão especializados na maioria dos tratamentos destinados às doenças crónicas. Mesmo sabendo que, estes serviços, enquanto privados, se comportam como entidades orientadas para o lucro, impondo ritmos de atendimentos por hora nada compatíveis com a maioria das necessidades de tratamento. E, assim, o tempo de espera vai aumentando.
É urgente colocar o tema em cima da mesa e ouvir os doentes, ou as associações que os representam. Sem complexos nem medo de ferir suscetibilidades, mas com um conhecimento real do que acontece um pouco por todo o país.
Assim, o novo Governo nos queira ouvir!
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