No presente artigo, abordaremos o impacto da pandemia da covid-19 na procriação medicamente assistida, bem como as estratégias para uma abordagem individualizada na retoma dos tratamentos.

Artigo da responsabilidade do Prof. Dr. Pedro Xavier, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução

 

O ano de 2020 acordou com um contexto de saúde pública que poucos imaginavam vir a ter o impacto sanitário, económico e social que hoje se lhe reconhece. A pandemia da covid-19, doença provocada pelo SARS-CoV-2, afetou o Planeta com tal magnitude que levou muitos governos a decretar o literal “encerramento” dos respetivos países.

Se estas medidas foram importantes para conter a disseminação da pandemia, não é menos verdade que tiveram um efeito devastador sobre os diferentes setores da atividade. A área da saúde foi particularmente afetada, uma vez que, para além de ter mobilizado todos os seus recursos para o combate à pandemia, teve de suspender muita da sua atividade programada, nomeadamente de consultas, exames, tratamentos e cirurgias.

SUSPENSÃO DA PMA

A Medicina da Reprodução, como seria de esperar, não foi exceção à opção de suspender a atividade clínica programada, nomeadamente os tratamentos de procriação medicamente assistida (PMA).

No dia 2 de março de 2020, foi identificado o primeiro caso em Portugal e, duas semanas depois, a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR) emitiu um comunicado com um conjunto de recomendações dirigidas aos Centros Nacionais de PMA. As recomendações foram especificamente quatro:

1) Não iniciar qualquer tratamento de fertilidade, com ou sem recurso a técnicas de PMA (exceção para a criopreservação de gâmetas em contexto de doença oncológica, cujo caráter pode ser inadiável);

2) Concluir todos os ciclos de FIV/ICSI já iniciados que estivessem na sua fase final de tratamento;

3) Diferir as transferências de embriões;

4) Cancelar todos os outros tratamentos de fertilidade já iniciados, envolvendo ou não o recurso a técnicas de PMA.

Na base dessas recomendações estiveram duas preocupações. Por um lado, a escassa informação sobre o impacto da infeção pelo SARS-CoV-2 sobre os embriões e gâmetas, bem como sobre a grávida e o feto. Por outro, e não menos importante, a necessidade de cumprimento do distanciamento social, solicitado pelas entidades oficiais, com o objetivo de diminuir o número de novos casos e, por consequência, evitar que o SNS pudesse entrar em colapso.

Nessa mesma altura, recomendações semelhantes foram emitidas a nível nacional pelo CNPMA e pela Ordem dos Médicos. Os Centros de PMA acabaram por suspender quase na totalidade a sua atividade, exceção feita para a preservação da fertilidade em pacientes de ambos os géneros, com doença oncológica ou com patologias que implicassem a utilização de quimioterápicos.

INFLUÊNCIA NA REPRODUÇÃO HUMANA

Tratando-se de um novo vírus, era inevitável ter mais dúvidas do que certezas. No entanto, foi possível acumular alguma evidência científica de modo a construir uma ideia mais consistente sobre a fisiopatologia da infeção.

O SARS-CoV-2 necessita da presença de um recetor específico para poder entrar nas células. Trata-se do recetor ACE2, com uma forte expressão no epitélio alveolar e no endotélio arterial e venoso. Também foi identificado em ovócitos e espermatozoides humanos; no entanto, subsistem algumas incertezas quanto ao verdadeiro impacto desta infeção na fertilidade a longo-prazo ou à possibilidade de transmissão do vírus por via sexual.

O nível de conhecimento atual relativamente à expressão do recetor ACE2 em embriões humanos é ainda incerto, embora a experiência mostre ser muito improvável a contaminação dos embriões humanos nos laboratórios de PMA.

Relativamente à transmissão mãe-feto durante a gravidez, embora rara, já foi documentada em vários casos, quase sempre com uma evolução favorável dos recém-nascidos.

No que diz respeito à suscetibilidade das grávidas à covid-19, atendendo à imunossupressão fisiológica da gravidez, é de considerar que possam merecer um cuidado especial. Os dados internacionais têm revelado a possibilidade de doença mais grave e maior taxa de complicações obstétricas, nomeadamente de parto pré-termo.

IMPACTO NA PMA

No dia 23 de abril de 2020, na sequência de uma então evolução relativamente favorável da pandemia em Portugal e da informação científica acumulada que apontava para riscos reduzidos para a PMA, a SPMR emitiu um novo comunicado a recomendar a retoma progressiva da atividade pelos Centros Nacionais, com a adoção dos respetivos planos de contingência.

Infelizmente, o impacto da paragem da atividade e a retoma gradual da mesma levou a que, no final do ano de 2020, as já longas listas de espera dos Centros públicos para tratamentos de PMA (cerca de 10 a 12 meses antes da pandemia) tivessem sofrido um agravamento generalizado.

Para além disso, entre março e dezembro de 2020, as doações no Banco Público de Gâmetas foram quase inexistentes. Neste contexto, a SPMR tem manifestado a sua preocupação com o adiamento dos tratamentos de PMA, sobretudo nas doentes de pior prognóstico, com idades mais avançadas e ou com baixa reserva ovárica. Este grupo de doentes, que pode representar cerca de 30% a 40% do total, tende a ter um declínio muito rápido da sua fertilidade e serão as que merecerão uma atenção especial na programação dos tratamentos.

Também as entidades que tutelam a saúde em Portugal têm que olhar definitivamente para a dificuldade de acesso dos pacientes aos tratamentos de PMA como um problema sério, que foi agravado pela pandemia, mas que já existia antes dela.

ESTRATÉGIAS PARA A RETOMA DA ATIVIDADE

Os Centros de PMA foram confrontados com diferentes desafios. Por um lado, tiveram a necessidade de implementar medidas de segurança dentro das suas instalações, que permitissem diminuir o risco de contaminações, tanto das suas equipas de profissionais como dos seus pacientes. Por outro, e não menos desafiante, foi a escolha da melhor estratégia para realizar os tratamentos com o nível de segurança e confiança que sempre os caracterizou.

A identificação dos pacientes infetados, nomeadamente dos assintomáticos, tem sido um dos maiores quebra-cabeças. Não parece oferecer dúvida que a utilização do questionário epidemiológico ao longo de todo o tratamento é de grande utilidade para detetar os casos suspeitos, reforçada pela realização de testes PCR aos pacientes submetidos a procedimentos mais invasivos.

A experiência generalizada tem sido a de um alto nível de segurança na atividade em PMA, traduzida num baixo número de infeções dos profissionais ou dos pacientes em tratamento. Para além disso, parece muito improvável a possibilidade de contaminação dos gâmetas ou embriões em laboratórios de PMA, atendendo ao rigor das normas de atuação e vigilância já aplicada para outros agentes infecciosos.

É, por isso, importante reforçar a confiança relativamente à segurança dos tratamentos de PMA efetuados em tempos de pandemia, nunca esquecendo que a infertilidade é uma doença cujo prognóstico é negativamente afetado pela idade, motivo pelo qual o adiamento dos tratamentos vai inevitavelmente agravar esse prognóstico.

Leia o artigo completo na edição de maio 2021 (nº 316)