Mais do que pensar apenas na alimentação, é essencial pensar no corpo. E é com esta nova abordagem que nasce o Hospital de Dia – RIPA (Resposta Integrada para as Perturbações Alimentares) das Irmãs Hospitaleiras, em Lisboa. Aqui, as emoções são trabalhadas, na sua essência de relação corporal, para um foco na recuperação do sentido da vida, do gosto em realizar experiências e em estar em relação com os outros.

Artigo da responsabilidade da Dra. Carla Costa. Psicóloga Clínica. RIPA – Resposta Integrada para as Perturbações Alimentares, das Irmãs Hospitaleiras

 

 

 

As sensações existem porque temos um corpo. Tudo é sentido no corpo e este tem memória do que vivencia, funcionando como uma fita que regista e armazena todas as experiências emocionais que vão ocorrendo ao longo da vida.

Biologicamente, o nosso corpo tende para a hemóstase, uma constância de condições internas, físicas e químicas mantidas para um funcionamento ideal do organismo. Existem muitas variáveis que precisam ser reguladas constantemente, de acordo com a mudança no ambiente, na dieta, na atividade do ser vivo e são estes mecanismos homeostáticos que, na sua regulação contínua, vão construindo o registo dos sentimentos homeostáticos em cada momento.

A alimentação é a memória mais antiga e a primeira experiência sensorial complexa, pelo que qualquer interferência nesta experiência pode impactar o equilíbrio do corpo e condicionar a perceção de si. Uma vez que, segundo os neurocientistas Hanna e António Damásio, “os sentimentos homeostáticos são a origem da consciência”, as pessoas que desenvolvem uma perturbação do comportamento alimentar têm já em si um condicionamento dos sentimentos de hemóstase e, por isso, uma alteração na capacidade de leitura dos sinais que o corpo emite. Consequentemente, poderão ocorrer modificações na consciência e na forma como o individuo vê e sente o seu corpo. Na mesma linha de pensamento exposta por estes investigadores, “a consciência é formada por contínuos sentimentos homeostáticos que revelam à pessoa qual o seu estado, em cada momento influenciando decisivamente a sua vida subjetiva”.

Na perturbação do comportamento alimentar (PCA) mais comum, a anorexia, existem problemas na interoceção e na proprioceção que dificultam a regulação e a interpretação dos sinais do corpo: “o meu corpo não sou eu”. As pessoas com PCA alteram a quantidade de nutrientes que ingerem e o corpo fica doente. Desta forma, não há recuperação psicológica sem melhorar a condição do corpo, sem que se reponha a hemóstase do organismo. Existe uma interligação entre o equilíbrio nutricional e de outras variáveis internas e o bem-estar psicológico dado pelo reconhecimento de sensações que são traduzidas pelo corpo. É neste desconhecimento dos limites internos do seu corpo que existe, na anorexia, um pensamento que o equilíbrio e o controlo sobre a vida advém da quantidade de alimentos ingeridos.

Estas patologias têm tido diferentes abordagens ao longo dos anos, muitas invocando a pressão da moda e das tendências e ideais de beleza emergentes em algumas sociedades, existindo, por isso, um pensamento generalizado que estas doentes querem emagrecer porque se sentem “gordas”, quando afinal elas procuram tão somente conhecer bem o seu corpo.

Nos últimos anos, outras linhas de pensamento têm vindo a emergir, nomeadamente com um autor italiano, Giovanni Stanghellini. Segundo este e outros autores, as PCA representam uma disfunção do embodiment (corporalidade). Este conceito, próximo do conceito de homeostarie, dos sentimentos do fenomenologista Merleau Ponty, refere-se à forma como as pessoas experienciam o próprio corpo, que vai além da simples perceção visual do mesmo, a consciência da existência do corpo em si num espaço ecológico para além de si. Está nesta apreensão, na primeira pessoa, da sua corporalidade (embodiment) e do reconhecimento dos limites do corpo físico que se compreende e se dá significado às experiências vividas.

Existe, em muitas jovens, um descontentamento com a realidade que as leva a emagrecer como meio de sentir que controlam a sua vida. Nas anorexias, existe uma busca incessante pela perfeição, por quererem corresponder às expectativas que pensam que os outros têm de si. Deixam de conseguir “ouvir” os sinais do seu corpo, as suas necessidades e anseios, para focarem toda a sua energia restante numa “corrida” para alcançar menos peso, como se esse fosse o garante do sucesso e do sentido para a vida. Este sentimento de culpa e de necessidade de validação constante do outro, por dificuldade em autogerir e controlar as necessidades do corpo, faz com que as anoréxicas estejam numa tristeza profunda e se sintam insuficientes nas relações com os outros.

É essencialmente na pré-adolescência, e com as transformações que começam a acontecer no corpo, que muitas iniciam esta dúvida sobre como está o seu corpo, quais são os limites da sua existência interna e externa, uma dificuldade em deixar um corpo até aí conhecido, seguro e cuidado por figuras parentais, para um corpo que se transforma, que se autonomiza e tem de se adaptar a novos desafios.

Mais do que pensar apenas na alimentação, é essencial pensar no corpo. E é com esta nova abordagem que nasce o Hospital de Dia – RIPA (Resposta Integrada para as Perturbações Alimentares) das Irmãs Hospitaleiras, em Lisboa. Aqui, as emoções são trabalhadas, na sua essência de relação corporal, para um foco na recuperação do sentido da vida, do gosto em realizar experiências e em estar em relação com os outros.

O processo de recuperação passa por criar, num primeiro momento, uma relação saudável com o corpo, de aceitação da alimentação como fundamental para viver e para experienciar acontecimentos e relações. Procura-se promover um conjunto de atividades (psicomotricidade, expressão artística, ioga, expressão dramática, terapia ocupacional, relaxamento, desenho projetivo do corpo, tai-chi, dieta e nutrição, psicoterapia individual e grupos terapêuticos) que estimulam o conhecimento do corpo e a interação com um grupo de pares que, em conjunto, desafiam medos e exploram vivências. Para que, assim, se possa contribuir acrescentar mais qualidade de vida a quem sofre estas doenças, mas também às suas famílias.