Uma das inovações tecnológicas mais importantes dos últimos anos e que promete ser revolucionário para a medicina é a aplicação de sistemas de inteligência artificial às colonoscopias.
Artigo da responsabilidade do Dr. Alexandre Ferreira. Gastroenterologista no Hospital Beatriz Ângelo
O cancro do cólon e do reto inclui-se no grupo heterogéneo de tumores nos cinco órgãos digestivos a que chamamos de “Big Five”. Aqui incluem-se, por ordem decrescente de incidência, as neoplasias malignas do cólon e reto, estômago, pâncreas, fígado e esófago.
Segundo os dados da Globocan, a incidência destes tumores tem aumentado ao longo dos últimos anos. Em 2020, foram diagnosticados 17.475 tumores, tendo causado a morte a 10.528 portugueses. No seu conjunto, estes tumores causam mais de uma morte por hora (29 mortes/dia).
O cancro do cólon (intestino grosso) e do reto é um grave problema de Saúde Pública. É a primeira causa de cancro (10.501 casos em 2020) e a segunda causa de morte por cancro em Portugal (4320 mortes em 2020). São 12 mortes por dia. Estes números têm vindo a aumentar progressivamente, apesar de sabermos que existe um exame que permite reduzir o risco de desenvolvimento deste tipo de cancro: a colonoscopia.
DIAGNÓSTICO PRECOCE MELHORA O PROGNÓSTICO
Infelizmente, na maioria dos casos, estas doenças são silenciosas, provocando sintomas apenas em fases avançadas. Por este motivo, o rastreio e o diagnóstico precoce são fundamentais para um tratamento atempado, permitindo obter maiores taxas de cura, melhorar o prognóstico e aumentar a sobrevida.
O diagnóstico dos tumores do tubo digestivo é realizado por endoscopia digestiva alta (esófago e estômago) e por colonoscopia (cólon e reto). As glândulas anexas (fígado e pâncreas) são menos acessíveis e é necessário recorrer a exames imagiológicos para o seu diagnóstico (tomografia computorizada ou ressonância magnética).
Durante a pandemia covid-19, o acesso aos cuidados de saúde foi limitado e houve uma redução drástica da atividade endoscópica, com necessidade de priorizar e protelar exames. Assim, embora saibamos que houve uma diminuição de exames endoscópicos e imagiológicos que possibilitam o rastreio e diagnóstico deste grupo de doenças, o verdadeiro impacto desta mudança é, atualmente, difícil de quantificar.
Visando uma inversão da tendência para aumento da mortalidade, sobretudo no caso do cancro do cólon e do reto, prevê-se que seja necessário um acesso alargado a estes exames durante os próximos anos.
REMOVER LESÕES PRECURSORAS DO CANCRO
A colonoscopia é um exame endoscópico realizado por um médico gastrenterologista e que permite, no mesmo momento, detetar lesões malignas (cancro) e também remover lesões pré-malignas (percursoras de cancro), que são habitualmente chamadas de pólipos ou de lesões planas.
O rastreio por colonoscopia possibilita reduzir, não só o risco de cancro do intestino, mas também o risco de vir a falecer devido ao mesmo. Sabemos que por cada 1% de aumento na taxa de colonoscopias totais conseguimos diminuir o risco de morte por cancro do cólon em 3 por cento.
Através do diagnóstico de um tumor maligno numa fase precoce do seu desenvolvimento, ainda sem sintomas, é possível oferecer ao doente um tratamento curativo, geralmente com recurso a uma cirurgia que remove parte do intestino grosso (cólon).
No entanto, o nosso grande objetivo é evitar o cancro. Para isso, temos que identificar pequenos tumores precursores do cancro, que podem ser removidos endoscopicamente, isto é, durante a própria colonoscopia e sem recurso a cirurgia. Estas lesões são muito frequentes, estando presentes em cerca de metade das pessoas com idade superior a 50 anos.
A maioria destas lesões são pequenas (menos de 10 mm) e são facilmente removidas, mas podem ter tamanhos maiores e ainda assim serem benignas. Lesões grandes podem ser difíceis de remover, mas a evolução tecnológica tem vindo a melhorar a nossa capacidade de remover este tipo de lesões por endoscopia. No nosso centro, já removemos lesões de 8 cm com a colonoscopia, evitando assim uma cirurgia.
INOVAÇÃO REVOLUCIONÁRIA
Infelizmente, a colonoscopia não é 100% eficaz a detetar lesões, apesar de ter vindo a ser refinada ao longo das últimas décadas. Há apenas alguns anos, os estudos mostravam taxas de deteção de lesões pré-malignas de 20-30%, mas atualmente esses valores rondam os 50%. Houve avanços significativos a vários níveis: nas preparações intestinais, na sedação dos doentes, na imagem dos endoscópios, no treino dos endoscopistas, entre outras.
Uma das inovações tecnológicas mais importantes dos últimos anos e que promete ser revolucionário para a Medicina é a aplicação de sistemas de Inteligência Artificial (IA).
Esta tecnologia permitiu desenvolver equipamentos capazes de aprender a identificar corretamente lesões de interesse. A aplicação destes equipamentos em procedimentos de rotina é simples e permite ajudar o médico a identificar melhor e mais rapidamente os tais pólipos durante a colonoscopia. Foram realizados vários ensaios clínicos em milhares de indivíduos, que revelaram um aumento da eficácia da colonoscopia em cerca de 44% com recurso à IA.
COMO UM SEGUNDO ESPECIALISTA
O equipamento consiste num pequeno processador que analisa a imagem da colonoscopia em simultâneo com o médico e emite um sinal sonoro e visual (como uma mira) quando identifica uma lesão. Este equipamento funciona, na prática, como ter um segundo médico especialista que nos ajuda a encontrar pólipos, sobretudo os mais difíceis de localizar. Os sistemas mais avançados permitem também a caracterização imediata da lesão, embora não dispense ainda a necessidade de análise histológica (microscópica).
Quanto mais pessoas sensibilizarmos a fazer a colonoscopia de rastreio a partir dos 50 anos e quanto melhores nós, médicos, formos a identificar e remover os pólipos e as lesões planas, menor será o peso do cancro do cólon e reto nos próximos anos.
A inteligência artificial é uma tecnologia inovadora que começou a entrar este ano na nossa prática clínica e está a ser progressivamente adotada nos centros portugueses. Esperemos que a sua aplicação seja generalizada, para sermos todos cada vez mais eficazes na nossa luta contra o cancro.
Os gastrenterologistas têm como principal missão contribuir para a saúde digestiva dos portugueses. Neste sentido, estamos unidos no esforço para reduzir o peso deste cancro digestivo, através da melhoria no acesso e na qualidade dos procedimentos endoscópicos. O sucesso desta nossa luta será medido nos próximos anos através da redução da incidência e da mortalidade por cancro do cólon e reto.
Leia o artigo completo na edição de novembro 2021 (nº 321)
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