Não obstante os avanços no conhecimento da fibromialgia, o facto de ainda não se ter identificado uma causa única, nem um marcador biológico exclusivo, fazem com que esta entidade sofra resistência de reconhecimento por parte das entidades oficiais e, mesmo, pela comunidade médica.

Artigo da responsabilidade do Dr. Paulo Clemente Coelho. Colaborador da Myos – Associação Nacional contra a Fibromialgia e a Síndrome de Fadiga Crónica

 

 

 

 

 

A fibromialgia é uma síndrome (conjunto de sintomas e sinais clínicos) de causa desconhecida, caracterizada por dor crónica difusa (dores no corpo todo), com frequência associada a fadiga, sono de má qualidade, alterações cognitivas (por exemplo, défice de memória). Poderão também coexistir ansiedade, depressão e um conjunto de alterações funcionais orgânicas, como, por exemplo, cólon irritável (dor abdominal, episódios de diarreia e de obstipação) ou queixas urinárias simulando uma infeção urinária.

PREVALÊNCIA E IMPACTO IGNORADOS

A sua prevalência na população em geral varia entre 1% e 5%, dependendo dos diferentes estudos, sendo mais frequente no sexo feminino. A elevada prevalência da fibromialgia levou a que, nas últimas décadas, fosse dedicada uma maior atenção por parte da comunidade científica a esta síndrome, com um crescente número de estudos que têm vindo a ajudar a perceber esta entidade complexa, a qual envolve fatores psicológicos, orgânicos, genéticos e sociais.

Apesar dos avanços no conhecimento desta síndrome, o facto de ainda não se ter identificado uma causa única para a fibromialgia, nem um marcador biológico exclusivo, fazem com que esta entidade sofra resistência de reconhecimento por parte das entidades oficiais e, mesmo, pela comunidade médica.

Deste modo, fica impedida uma abordagem construtiva da realidade existencial e clínica complexa do doente fibromiálgico, procurando-se refúgio numa “negação” desta entidade, ignorando a sua elevada prevalência nas consultas médicas e o impacto importante na vida pessoal de quem a sofre.

Em última análise, podemos dizer que a recusa em lidar com esta realidade se transforma na oposição à prática da verdadeira arte médica, em que o doente deve ser o centro do cuidado e da atenção, não dependendo estes de qualquer dado adicional, como seja, a “necessidade” de um valor alterado nas análises ou noutros exames complementares, os quais são, habitualmente, normais no doente com fibromialgia.

CRITÉRIOS DE DIAGNÓSTICO

Da análise dos vários critérios de diagnóstico existentes para a fibromialgia, o melhor desempenho tem sido atribuído aos Critérios ACR (revisão de 2016), os quais incluem genericamente os seguintes parâmetros:

  • dor em, pelo menos, quatro de cinco regiões do corpo (duração superior a 3 meses);
  • fadiga, alterações do sono e cognitivas;
  • sintomas somáticos, como sejam cefaleia ou dor abdominal;
  • alterações psicológicas, como a depressão.

De salientar que o diagnóstico de fibromialgia não excluí a existência de outras entidades clínicas associadas e que um diagnóstico clínico completo, de todas as situações, é muito importante para o enquadramento patológico total de cada doente.

É frequente que algumas queixas do doente fibromiálgico, não relacionadas com esta entidade, passem despercebidas no meio da sintomatologia da fibromialgia, levando ao não tratamento de outras situações independentes e que carecem de uma abordagem diagnóstica e terapêutica diferente.

MECANISMOS PREDISPONENTES E ALTERAÇÕES PSICOBIOLÓGICAS

A evolução para uma melhor compreensão dos mecanismos predisponentes e alterações psicobiológicas (fisiopatologia) que levam à fibromialgia e aos quadros de dor crónica tem sido crescente nos anos mais recentes. Os mais importantes, presentemente, são:

  • A predisposição genética: importante em alguns grupos, mas não universal. Parece ter mais influência nos doentes mais jovens.
  • Fatores da vida diária e sociais: situações de stress mantido e significativo; episódios traumáticos, nomeadamente na juventude e adolescência.
  • Fatores psicológicos: não sendo a fibromialgia uma doença mental, certos perfis correlacionam-se mais com esta síndrome. Entre estes, temos: depressão, ansiedade, amplificação anormal de acontecimentos e sintomas, catastrofização (tendência a “profetizar” situações futuras trágicas, que raramente acontecem), etc.
  • Fatores neurofisiológicos: a deteção da dor (nível periférico) e o processamento da dor a nível do sistema nervoso central parecem estar alterados e a funcionar com limiares baixos de deteção e com uma tendência a dar ao estímulo doloroso desencadeante (quando ele existe) um valor muito superior àquilo que seria normal. Estas alterações expressam-se biologicamente por alterações nos níveis de neurotransmissores (serotonina; GABA; substância P; etc.).
  • Fatores imunoinflamatórios: certas citocinas (moléculas relacionadas com o processo inflamatório e imunológico) parecem estar alteradas nos doentes com fibromialgia, o mesmo podendo acontecer com certas linhagens celulares, como sejam, os mastócitos, e certos tipos de linfócitos.
  • Fatores hormonais: foram descritas alterações predisponentes em hormonas, nomeadamente na ACTH e na vitamina D.

INSTRUMENTOS TERAPÊUTICOS

Em sequência do maior reconhecimento dos mecanismos relacionados com a fibromialgia, o tratamento desta entidade deve reger-se por duas regras principais:

1) Um diagnóstico claro de fibromialgia, incluindo eventuais situações patológicas associadas ou concomitantes.

2) Um tratamento multidisciplinar e multifatorial adaptado a cada situação individual, da forma mais perfeita possível, partindo de um indispensável reconhecimento do sofrimento em que um doente com fibromialgia se encontra.

Ao mesmo tempo, a situação concreta deve ser colocada na sua dimensão real, não permitindo a persistência do patamar de ansiedade exagerado em que, geralmente, o doente fibromiálgico vive em relação às suas queixas.

De forma resumida, os instrumentos que temos ao dispor para o tratamento do doente fibromiálgico são:

MEDIDAS NÃO FARMACOLÓGICAS – Educação do doente quanto à sua situação patológica concreta; intervenção psicológica (incluindo técnicas de adaptação e de relaxamento); exercício físico adaptado; técnicas de medicina física e de reabilitação (incluindo massagem e hidroterapia);

MEDIDAS FARMACOLÓGICAS – Os fármacos com indicação oficialmente reconhecida para o tratamento da fibromialgia são alguns anti-depressivos inibidores da recaptação de serotonina e alguns anticonvulsivantes. Além destes, dependendo da situação, também se usam relaxantes musculares, analgésicos, anti-inflamatórios não esteroides, sedativos, ansiolíticos, entre outros. De referir que o potencial uso de derivados canabinoides, muito referido atualmente, continua alvo de estudo quanto à sua eficácia e potenciais efeitos adversos, pelo que não devem ser usados de forma liberal e sem controlo médico, antes que se estabeleça a sua verdadeira indicação no tratamento da fibromialgia e da dor crónica.

Leia o artigo completo na edição de maio 2022 (nº 327)