É muito importante podermos avançar com uma abordagem adequada em fases precoces da epilepsia, onde sabemos ser mais fácil o seu controlo. Infelizmente, ainda existe uma grande discrepância entre quem pode ser tratado e quem realmente está a ser tratado.

 

Artigo da responsabilidade do Dr. Alexandre Rainha Campos
Neurocirurgião no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN).

A epilepsia afeta entre 20 a 90 mil portugueses e, todos os anos, surgem em média cerca de 2 a 5 mil novos casos. Destes, cerca de 250 serão refratários aos tratamentos médicos. O que significa que um décimo dos doentes com epilepsia vai ter sempre crises, apesar da medicação, o que torna fundamental um diagnóstico precoce e avaliação prévia do tipo de epilepsia. Mas, para perceber esta patologia, os seus mecanismos e o que são as crises epiléticas é preciso explicar alguns conceitos.

CRISES REPETIDAS
Assim, ao falarmos sobre a epilepsia, é fundamental perceber que esta é uma doença que tem ponto de partida numa perturbação do funcionamento do cérebro. As crises epiléticas desenvolvem-se no sistema nervoso central, devido a uma descarga anormal de alguns ou da quase totalidade dos neurónios cerebrais. Esta descarga leva à ocorrência de episódios de convulsões, de curta duração (pode ir de segundos a minutos), e que envolve diversas funções mentais e físicas, dependendo das áreas afetadas do cérebro.
A epilepsia, por sua vez, é uma doença com uma predisposição para gerar crises epiléticas repetidas. Estas crises epiléticas, na verdade, todas as pessoas podem ter, em determinadas condições, como infeções ou intoxicações. É a repetição destas crises que leva ao diagnóstico de epilepsia.

EPILEPSIA REFRATÁRIA
A persistência na frequência das crises epiléticas após o uso de, pelo menos, dois medicamentos, devidamente indicados para o tipo de epilepsia e nas doses corretas, é o que define epilepsia refratária.
A persistência de crises não controladas e de forma continuada pode criar lesões a longo prazo. Isto é particularmente grave no caso das crianças com epilepsia refratária, em que esta pode prejudicar gravemente o desenvolvimento cerebral. As descargas constantes impedem, assim, o cérebro de se desenvolver normalmente e podem tornar-se incuráveis, se não forem tratadas atempadamente.

ESTIGMA PARA MUITOS
Apesar da epilepsia poder ser grave em alguns casos, na grande maioria, as crises são ligeiras, de fácil controlo com medicação e não provocam acidentes, mas a sua existência causa grande insegurança nas pessoas com epilepsia, bem como a familiares e conhecidos. Esta insegurança está relacionada, muito provavelmente, com o conhecimento dos casos mais dramáticos de epilepsias graves. Estes casos, com perturbações de desenvolvimento associadas acabam por estigmatizar quem sofre de formas mais ligeiras, que estão no outro extremo do espetro da epilepsia e são, sem dúvida, a larga maioria.
A epilepsia deve, pois, ser considerada como uma doença crónica e deve-se evitar que provoque alterações profundas na vida de um indivíduo. Ao longo da história, tivemos exemplos de figuras de grande importância para humanidade que sofreram de epilepsia, como por exemplo Alfred Nobel, Agatha Christie, Prince, Theodore Roosevelt, Michaelangelo, entre muitos outros. Esta doença não os impediu de realizar grandes feitos históricos.

ABORDAGEM MULTIDISCIPLINAR
Desta forma, a epilepsia exige uma abordagem multidisciplinar para contrariar os efeitos psicossociais, entre os quais os receios do doente e família, vergonha e medo do estigma, isolamento social, perda de autonomia, dificuldade no acesso e manutenção do emprego ou restrições à condução (que é legalmente permitida a condutores do grupo B quando a epilepsia está controlada). Junte-se a este cenário a importância de explorar os desafios e tratamentos da epilepsia para se conseguir controlar o maior número possível de crises, causando o mínimo de efeitos desagradáveis.

COMO PODE SER FEITO O RECONHECIMENTO PRECOCE DA DOENÇA?
A epilepsia pode surgir em qualquer idade, com o pico de incidência nas crianças e nos idosos. A causa também vai variar e pode ser de natureza genética, secundária ou por lesões cerebrais (após acidentes, infeções, tumores ou através de um acidente vascular cerebral, por exemplo) ou alterações no desenvolvimento cerebral.
É, desta forma, uma doença que transporta incerteza e que pode ter diferentes causas e características nas crises, assim como a frequência com que se repetem e na facilidade com que são controladas. Isto é, dependendo da idade, tipo de crise(s), presença ou não de alterações no sistema psicomotor e/ou observação neurológica e das alterações no eletroencefalograma (EEG) e ressonância magnética cerebral (RM CE), as epilepsias podem classificar-se em vários síndromes epiléticos.

EXAMES AUXILIARES DE DIAGNÓSTICO
Para se conseguir avaliar as descargas elétricas cerebrais, pode ser utilizado o eletroencefalograma (EEG), que existe há cerca de um século, o qual permite distinguir diferentes padrões patológicos e localizar focos epiléticos (a zona que leva à existência de crises).
Além disso, é igualmente importante identificar, com exames como a ressonância magnética cerebral, alterações cerebrais que possam justificar a epilepsia. Dependendo do tipo de epilepsia, algumas formas, principalmente na infância, evoluem espontaneamente para a cura. Contudo, há também casos em que a doença acompanha a pessoa ao longo da vida, apesar de existir tratamento.
Sempre que surja a hipótese de se estar perante uma criança ou um adulto com epilepsia, devem ser realizados os exames clínicos e complementares de diagnóstico e, se se confirmar, referenciar para consulta de Neuropediatria ou de Neurologia. A grande maioria das pessoas com epilepsia pode ser acompanhada corretamente pelo seu médico de família, mas se houver persistência de crises, deve ser também acompanhado por um neuropediatra ou neurologista, que saberá quando referenciar para Centros de Epilepsias Refratárias.

COMO TRATAR A EPILEPSIA?
O principal objetivo do tratamento é que se consiga garantir o controlo das crises epiléticas após o diagnóstico do tipo de epilepsia. Afinal, é importante escolher o fármaco mais adequado à pessoa e suas características. Referindo que é fulcral que a medicação seja cumprida de forma regular, tendo em atenção o cruzamento com outros medicamentos e a adoção de um estilo de vida saudável no que concerne os hábitos de sono, alimentação e consumo de álcool ou drogas.
Estes comportamentos levam a que a grande maioria dos doentes consiga controlar, com terapêutica farmacológica, a sua patologia. Por sua vez, há alguns casos que, independentemente da medicação, continuam com crises e é necessário adotar outros procedimentos. Felizmente, a medicina tem evoluído muito no controlo da epilepsia, tanto a nível farmacológico como nas tecnologias cirúrgicas, que conseguem controlar com eficácia e segurança crescente uma grande parte das epilepsias refratárias.

CENTROS DE TRATAMENTO DE EPILEPSIAS
Quando se estabelece um diagnóstico de epilepsia refratária ou quando pode existir uma forma curável, como é o caso de alguns tumores cerebrais ou malformações do seu desenvolvimento, é fundamental referenciar para os grandes centros de tratamento de epilepsias de Portugal. No nosso país temos cinco centros: dois no Porto, um em Coimbra e dois em Lisboa. Estes centros têm o conhecimento de todos os tratamentos inovadores de vanguarda para o seu tratamento e alguns fazem parte, inclusive, de uma rede europeia para tratamento das epilepsias. Nestes centros, as epilepsias são abordadas por grupos multidisciplinares que procuram diagnosticar e encontrar o melhor tratamento para cada caso individual.

CIRURGIAS MINIMAMENTE INVASIVAS
Atualmente, a cirurgia é um dos tratamentos que se encontra reservado para aproximadamente um terço das epilepsias refratárias. Apesar de só ser aplicado a uma pequena minoria desta população, os resultados são cada vez mais encorajadores, com cura numa percentagem elevada de casos e melhoria do controlo de crises em grande parte dos restantes.
Nos últimos anos, temos assistido ao aparecimento de novas técnicas cirúrgicas que têm conseguido diminuir o incómodo causado pela própria cirurgia. São exemplo disso as técnicas minimamente invasivas que, de forma segura, aumentam a capacidade de diagnóstico, aumentando a sua precisão, com redução de complicações. Também para o tratamento é agora possível realizar técnicas minimamente invasivas que permitem controlar a epilepsia, mantendo todas as funções possíveis para o doente e minimizando os efeitos colaterais.
Com técnicas como a termoablação por laser, é possível visualizar, em simultâneo e em tempo real, onde estamos a inativar um potencial foco da epilepsia e proteger estruturas importantes na sua vizinhança. Este procedimento garante, assim, menor morbilidade cirúrgica. Ao reduzir o desconforto pela utilização de apenas a introdução de uma fibra de laser no cérebro, os doentes podem ter alta no dia seguinte e retomar rapidamente a sua vida prévia. Como consequência, sofrem um menor impacto pessoal, social e financeiro.

FALAR ABERTAMENTE E DESMITIFICAR OS RECEIOS
Infelizmente, ainda existe uma grande discrepância entre quem pode ser tratado e quem realmente está a ser tratado. É necessário que os médicos que acompanham estas pessoas os referenciem mais precocemente. Para tal, é preciso falar abertamente e desmitificar os principais receios que existem com os procedimentos cirúrgicos. Mesmo as técnicas menos invasivas têm vindo a tornar-se cada vez mais seguras e o receio da cirurgia não deve ser colocado à frente de uma potencial cura da epilepsia. Só depois de falar com alguém que conheça realmente as opções cirúrgicas para o caso em concreto e que possa explicar quais os riscos potenciais da intervenção é que essa decisão poderá ser feita de forma consciente.
Temos de apostar no futuro da cirurgia da epilepsia, com um desafio maior nas idades pediátricas. Nestas idades, com menor carga de doença e farmacológica, existe um melhor prognóstico associado. É muito importante podermos avançar com uma abordagem em fases precoces da doença, onde sabemos ser mais fácil o seu controlo. Para isso, é fundamental referenciar mais cedo para os Centros de Epilepsia do País.

 

Destaque
Cirurgia inovadora com recurso a laser
Em 2019, no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (CHULN), foi realizado pela primeira vez uma cirurgia inovadora com recurso a laser para tratamento de uma epilepsia refratária. O tratamento foi efetuado no Serviço de Neurocirurgia do CHULN a uma criança de 2 anos com um hamartoma hipotalâmico e epilepsia refratária.
Com esta técnica – a termoablação por laser (Laser interstitial thermal therapy –LITT) – é possível destruir tecidos doentes no cérebro, de forma minimamente invasiva, com taxas de complicações menores e internamentos mais curtos. A doente teve rapidamente alta, não se registando qualquer complicação ou desconforto e tendo ficado com a sua epilepsia controlada na altura.
Esta técnica foi introduzida na Europa, em 2018, e implementada pela primeira vez em Portugal, neste centro, com um trabalho que juntou neurocirugiões, neuropediatras, neurologistas, neuroanestesias, neurorradiologistas, enfermeiros, técnicos de radiologia, entre muitos outros profissionais de saúde.

Artigo publicado na edição de fevereiro 2021 (nº 313)