Celebrar o Dia Mundial da Saúde Mental é, hoje, mais do que um gesto simbólico — é um imperativo ético, de saúde e social. A relação entre saúde mental e o trabalho tornou-se incontornavelmente proeminente numa altura em que o equilíbrio entre produtividade e bem-estar com frequência interage. O trabalho pode ser fonte de realização e identidade, mas também um espaço de risco, onde o stress, o trauma, o burnout ou a exclusão sistemática deixam marcas profundas ao ponto de condicionar perda de saúde mental e necessidade de cuidados dirigidos.

Artigo da responsabilidade do Dr. Afonso Gouveia. Médico especialista em Psiquiatria do Hospital de Cascais Dr. José de Almeida; Assistente convidado de Psicologia Médica da NOVA Medical School da Universidade NOVA de Lisboa e membro integrado do Comprehensive Health Research Centre. Cocoordenador do livro Saúde Mental e o Trabalho (LIDEL)

A Organização Mundial da Saúde estima que cerca de 15% dos adultos em idade ativa viva com uma perturbação mental. Em Portugal, quase dois em cada cinco trabalhadores referem stress, sintomas de ansiedade ou depressão relacionados com o trabalho. Para além do sofrimento humano, as consequências económicas são expressivas: absentismo, presentismo e perda de produtividade, que representam milhares de milhões de euros por ano.

O burnout, mais do que simples cansaço, traduz antes um estado de marcada exaustão, baixa realização profissional e cinismo, corroendo lentamente o sentido de propósito e atentando contra o frágil equilíbrio que traduz a Saúde. Já o stress laboral, embora uma resposta natural de adaptação, pode tornar-se nocivo quando se prolonga e ultrapassa a capacidade de recuperação do indivíduo e se torna prejudicial ao funcionamento. A linha entre desafio e sobrecarga é também cada vez mais ténue e dinâmica, especialmente em contextos de alta exigência — como na saúde, na educação ou em funções de liderança.

Mas os riscos não se esgotam nos ambientes de trabalho formais. O desemprego, a precariedade e a insegurança laboral continuam a ser poderosos determinantes de sofrimento mental, assim como exposição a violência, discriminação ou prejuízo sistemático. Os trabalhadores migrados (mas não só!) reúnem facilmente estes fatores de vulnerabilidade, a par de outros como isolamento, parco suporte sociofamiliar e, muitas vezes, condições laborais precárias e exigentes ou discriminatórias. Para aqueles que vivem com uma doença mental, a discriminação pode, igualmente, começar antes mesmo da entrevista de emprego, na menor oferta de oportunidades e no apoio no regresso ao trabalho. Para tal, contribui o estigma e a falta de literacia em saúde mental que excluem, encurralam e perpetuam desigualdades.

A pandemia veio acelerar uma transformação estrutural: o teletrabalho mostrou que a fronteira entre o tempo profissional e pessoal pode ser ainda mais frágil. Se, para uns, trouxe liberdade e autonomia, para outros imputou isolamento, sobrecarga e infiltração do espaço doméstico pela faceta digital do trabalho. Mais do que nunca, torna-se essencial repensar a organização do trabalho à luz do imperativo de cuidar da saúde mental no trabalho — não como luxo, mas como uma necessidade. Se nos parece lógico e evidente que, por exemplo, trabalhadores do setor da construção tenham de usar equipamento de proteção individual e não se poupem esforços na prevenção de acidentes de trabalho, porque não também para trabalhadores no setor da saúde, que laboram sob imenso stress e exposição a fenómenos de violência e outros potencialmente traumáticos? (Para mim é, e para o(a) caro(a) leitor?)

Felizmente, multiplicam-se exemplos de instituições que assumem o bem-estar mental como parte da sua estratégia organizacional. Programas de gestão de riscos psicossociais, de promoção de saúde mental e de apoio psicológico no trabalho têm mostrado resultados claros: maior satisfação, menor rotatividade e ganhos reais em produtividade.

Como sublinha o livro Saúde Mental e o Trabalho (LIDEL) (Moura P. & Gouveia A., 2025), importa reconhecer que cuidar da saúde mental dos trabalhadores não é apenas prevenir doença — é investir na sustentabilidade humana e económica das organizações. Cada pessoa que se sente bem no seu trabalho contribui para ambientes mais criativos, solidários e produtivos.

Neste Dia Mundial da Saúde Mental, o desafio é coletivo: olhar o trabalho não apenas como fonte de rendimento e produto interno de um país, mas como espaço possibilitador de saúde, dignidade e futuro daqueles que compõem a agência das sociedades e nações. Promover saúde mental no trabalho é unir o bem-estar e a saúde mental à produtividade e felicidade, já que o trabalho pode engrandecer a vida sem a ela subtrair saúde.

Leitura complementar:

  1. Moura & A. Gouveia (Coords.), Saúde Mental e o Trabalho – Uma Abordagem Integrada da Psiquiatria do Trabalho. (2025) 1st ed. Lidel – Ed. Técnicas, Lisboa. ISBN 978-989-752-947-4