Apesar de acompanhar a evolução da espécie humana desde o seu início, a obesidade tornou-se, nos últimos 50 anos, uma epidemia à escala global.

Artigo da responsabilidade do Prof. Dr. Gil Faria. Cirurgião especialista em Cirurgia Metabólica e coordenador dos Centros de Tratamento da Obesidade do Hospital Pedro Hispano e do Grupo Trofa Saúde

 

Devido à elevada eficiência energética e capacidade de adaptação metabólica, o organismo humano é capaz de sobreviver durante longos anos em condições de severa restrição calórica. Este mecanismo de adaptação, outrora favorável ao desenvolvimento da espécie, no ambiente atual com comida facilmente disponível, culminou no significativo desenvolvimento da obesidade. Antigamente associada à formosura (porque revelava uma condição de prosperidade e a esperança de vida não era suficiente para que se exprimisse todo o leque de complicações cardiovasculares), a obesidade foi finalmente classificada como uma doença, há pouco mais de 10 anos.

Atualmente, a obesidade constitui um dos mais graves problemas de saúde pública a nível mundial, sendo o principal fator de risco modificável para morte prematura e estando associada (entre outras) ao desenvolvimento de praticamente todas as doenças cardiovasculares e a diversos tipos de cancro. É diretamente responsável por cerca de 10% de todos os gastos em saúde, estimando-se, em Portugal, mais de 1.000 milhões de euros anualmente gastos em cuidados de saúde associados à obesidade. O excesso de peso e obesidade afetam mais de metade da população portuguesa e estima-se que existam aproximadamente 1.5 milhões de portugueses com obesidade.

Estigma

Infelizmente, para grande parte da sociedade a obesidade continua a ser encarada como uma escolha pessoal, ao invés de ser entendida como uma doença. Sendo certo que o comportamento alimentar e o sedentarismo são basilares para o desenvolvimento da obesidade, esta é uma doença multifatorial, com componentes genéticos, ambientais e comportamentais. Continuamos socialmente a estigmatizar as pessoas com obesidade com dois dos pecados mortais da doutrina judaico-cristã: a gula e a preguiça. Comentamos as escolhas alimentares das pessoas com obesidade (ignorando as escolhas semelhantes efetuadas por indivíduos com peso normal) e acreditamos que a prática de exercício físico será a solução para este problema.

Os hábitos de vida saudáveis (a nível de escolhas alimentares e atividade física) são uma componente fundamental do tratamento desta patologia, mas tal como em praticamente todas as doenças crónicas, a alteração comportamental não é suficiente para a sua terapia. Não passaria pela cabeça de nenhum de nós (talvez passe pela de alguns adeptos das “medicinas alternativas”) dizer a um doente com cancro que precisa é de força de vontade; a um com asma que precisa é de respirar mais devagar; ou a um com uma osteoartrose do joelho que precisa é de ir dar umas corridas. Mas continua a ser esta a “oferta” que fazemos a quem sofre com obesidade…

Terapias eficazes

Felizmente, a evolução do conhecimento médico permite-nos hoje ter algumas terapias eficazes no controlo da obesidade e das doenças metabólicas associadas.

Existem, atualmente, alguns fármacos com resultados promissores no controlo do peso e existem tratamentos cirúrgicos com resultados a longo prazo comprovados em milhões de doentes tratados.

A cirurgia mais “clássica” – o bypass gástrico – tem praticamente 50 anos de experiência (é realizada desde finais dos anos 70) e foi através do estudo desta técnica cirúrgica que se percebeu a relação entre a obesidade, a diabetes e uma série de hormonas produzidas pelo intestino. Nos anos 80, começou a perceber-se que os pacientes com obesidade e diabetes atingiam o controlo da doença, sem necessidade de medicação, apenas alguns dias após serem operados. E isto foi acontecendo num doente após o outro. Aí, percebeu-se que a cirurgia bariátrica (cirurgia para tratamento do peso) tinha um efeito muito mais importante do que apenas o de diminuir o peso em excesso: era uma cirurgia capaz de alterar o próprio metabolismo. Estas alterações metabólicas precedem a perda de peso e instalam-se apenas alguns dias após a cirurgia, sendo um dos principais fatores responsáveis pelos resultados da cirurgia. E assim, a cirurgia bariátrica foi, lentamente, mudando de nome. O termo mais correto, hoje em dia, será o de cirurgia metabólica.

Cirurgias metabólicas

Constituem cirurgias metabólicas todas as técnicas cirúrgicas com capacidade para alterar diretamente o metabolismo, resultando numa perda de peso. Após uma cirurgia, a redução de peso poderá ser superior a 30%, atingindo-se este objetivo de uma forma “natural”. A normalização do metabolismo, resulta num compromisso mais fácil e efetivo com hábitos alimentares mais responsáveis e com uma regulação energética do organismo que favorece a perda de peso. Com diminuições desta magnitude, torna-se também possível a prática de exercício físico regular e a adoção de estilos de vida verdadeiramente saudáveis.

Com o desenvolvimento das técnicas cirúrgicas, com o acumular da experiência e com o progressivo aumento da segurança e da eficácia das cirurgias, estas são cada vez mais dirigidas a estadios mais precoces da patologia. Uma cirurgia metabólica não é apenas para os casos extremos da obesidade, estando, atualmente, indicada pelas principais sociedades científicas em pessoas com obesidade classe 2 (IMC superior a 35 kg/m^2) ou com obesidade classe 1 e doenças associadas. Esta alteração recente vem confirmar que todos os custos e riscos associados à cirurgia são mais baixos do que os de não fazer nada (ou de efetuar outros tipos de tratamento com baixas taxas de eficácia).

Processo individualizado

Para concluir, é importante ressaltar que o tratamento da obesidade é sempre um processo contínuo e individualizado. Não existe, por isso, uma solução transversal que funcione para todos. Cada pessoa enfrenta desafios únicos e requer uma abordagem personalizada para alcançar e manter um peso saudável. A obesidade é uma doença com grave impacto na qualidade de vida e na esperança de anos que se vive com saúde, mas existem terapias que a permitem controlar de forma eficaz e duradoura. Basta que se percam os preconceitos associados à obesidade e se confie na evidência científica.