Há períodos do ano em que o tempo parece ganhar um peso diferente. Dezembro é um deles. À medida que o calendário se aproxima do fim, cresce o impulso de fazer balanços, de medir ganhos e perdas, de revisitar as ausências. Para muitos, esse tempo traz um certo mal-estar — uma melancolia discreta, como se o corpo se lembrasse do que o pensamento tenta esquecer. No centro dessa experiência, está o luto.
Artigo da responsabilidade do Dr. Alexandre Bogalho. Psicólogo clínico. Neuropsicólogo.
O luto é um processo inevitável e profundamente humano. Em clínica, não se define apenas pela morte de alguém, mas por toda e qualquer forma de perda significativa: o fim de uma relação, a partida de um filho, a mudança forçada de vida, a quebra de uma identidade, um balanço tão profundo que abala a nossa existência. Cada despedida convoca uma reorganização interna. E é precisamente nesse movimento de reorganização que reside a dimensão terapêutica do luto — não como doença, mas como expressão natural da psique que procura reencontrar o equilíbrio depois da rutura.
A teoria contemporânea da psicologia do luto reconhece que este não é linear. Alterna entre momentos de confronto e de afastamento da dor. A oscilação é um mecanismo adaptativo: aproxima-nos do sofrimento quando estamos prontos e protege-nos quando precisamos respirar. Ao contrário da visão antiga que via o luto como uma “tarefa” a ser concluída, hoje entende-se que o vínculo com o que se perdeu transforma-se, em vez de se extinguir. O amor continua, mas muda de forma.
No fim do ano, quando os rituais sociais nos empurram para a alegria, o luto pode tornar-se mais evidente. A festa coletiva contrasta com a privacidade da dor. A psicologia clínica observa, com frequência, a tendência de as pessoas reprimirem a tristeza neste período, temendo estragar o “espírito festivo”. Mas reprimir é um engano que adia a cura. O sofrimento emocional não se dissolve no silêncio; apenas se entranha. É aqui que a autocompaixão se torna essencial.
A autocompaixão, conceito amplamente estudado na terapia de aceitação e compromisso e na abordagem mindful, não é indulgência nem autopiedade — é a capacidade de acolher a própria dor com a mesma gentileza que ofereceríamos a alguém que amamos. É reconhecer o sofrimento como parte da condição humana, sem julgamento. Dizer a si mesmo: “Estou a sofrer, e isso é legítimo” é, em si, um ato clínico de regulação emocional. Estudos mostram que a autocompaixão reduz a ativação da amígdala, diminui cortisol e favorece o restabelecimento fisiológico da calma. É, portanto, não só um gesto espiritual, mas um recurso neuropsicológico de cuidado.
Os rituais de despedida cumprem, neste contexto, uma função integradora. São o lugar simbólico onde o inconsciente encontra linguagem. Escrever o nome de quem partiu e queimá-lo numa chama, acender uma vela, visitar o mar, ou simplesmente permanecer em silêncio — tudo isso são formas de transformar a perda em presença, de converter o indizível em gesto. A psicologia clínica reconhece nesses atos um poder de reconhecimento: não mudam o passado, mas reconstroem o sentido do que ficou.
Há, contudo, algo de excecional no luto. Ele suspende o ritmo habitual da vida, cria um espaço fora do tempo — um intervalo onde o real e o simbólico se tocam. É nesse espaço que muitas pessoas descobrem, pela primeira vez, a dimensão espiritual da existência, mesmo sem a nomear. A dor obriga à escuta profunda. E é nessa escuta que se abre a possibilidade de mudança: de sermos mais compassivos, mais humanos, mais conscientes da finitude e da beleza de estar vivo.
No consultório, é comum observar como o luto pode revelar forças antes desconhecidas. Pessoas que, em meio à perda, redescobrem o valor do cuidado, da presença, da relação. Não se trata de romantizar a dor, mas de reconhecer que nela habita uma potência de transformação. A psicologia clínica não pretende “curar” o luto, mas acompanhá-lo — facilitar o processo de integração, garantir que a dor encontre expressão, que o vazio ganhe contorno.
O fim do ano é, por isso, um tempo simbólico privilegiado para este trabalho. A mudança de ciclo convida à revisão, à entrega, à aceitação do que termina. Se o calendário social nos empurra para celebrar, o calendário interno pode sugerir um outro tipo de festa: a celebração silenciosa daquilo que resistiu, daquilo que amadureceu dentro da perda.
Talvez a grande lição do luto seja essa: não precisamos de ser salvos da dor, precisamos de ser acompanhados nela — por nós mesmos, pelos outros, pela memória dos que amámos. E quando a dor se torna mais branda, o que resta é um tipo de gratidão que não nega a ausência, mas reconhece a sua marca como parte do que somos.
Assim, quando dezembro termina e o ano se encerra, é possível olhar para trás com ternura. O luto, vivido com autocompaixão, deixa de ser apenas a sombra do que se perdeu e torna-se a matéria com que se constrói o novo. E é nesse ponto de encontro entre dor e sentido que o ser humano, frágil e resiliente, se descobre inteiro outra vez.














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