Uma reflexão sobre Adolescência e os ciclos invisíveis da violência.

Artigo da responsabilidade da Dra. Célia Losa Margato. Especialista em Epigenética Social e Comportamental

A série Adolescência (Netflix) apresenta-nos um jovem aparentemente bem integrado numa família funcional e amorosa, mas que, de forma abrupta e inesperada, comete um ato de violência extrema: mata uma colega. Esse momento de choque não surge do nada, mas é uma consequência de um complexo emaranhado de influências genéticas, familiares e sociais que moldam o comportamento juvenil. A narrativa da série revela, sem querer, uma verdade científica poderosa: a violência e os comportamentos impulsivos não são apenas resultados do que os indivíduos vivem no presente, mas sim da forma como as gerações anteriores lidaram com as suas próprias feridas emocionais e sociais.

O comportamento do jovem é, de facto, um reflexo de uma dinâmica invisível que muitas vezes não é percebida, mas que se perpetua no inconsciente familiar. A teoria epigenética da personalidade é uma chave fundamental para compreendermos este processo. Esta teoria explica que, embora os genes desempenhem um papel central no nosso comportamento, são as experiências de vida, os traumas não resolvidos e os contextos ambientais que determinam, ao longo do tempo, como esses genes se expressam. Estes padrões podem ser passados de geração em geração, não apenas entre pais e filhos, mas também entre avós, bisavós e outras gerações anteriores, perpetuando ciclos de sofrimento e disfunção muitas vezes invisíveis.

É precisamente este contínuo de influências invisíveis que a série Adolescência expõe. O jovem que comete um ato tão extremo de violência não o faz num vácuo; ele age em resposta a um histórico familiar não resolvido, a uma sobrecarga emocional que talvez nem os próprios pais compreendam completamente. A epigenética mostra-nos que o ambiente e os traumas vividos não apenas moldam a vida de quem os experienciou, mas também afetam a próxima geração, através de mecanismos biológicos profundos. Os traumas podem não ser reconhecidos de forma consciente, mas as suas marcas, codificadas no DNA e expressas através da epigenética, continuam a influenciar as decisões e comportamentos das gerações seguintes.

O mundo moderno, especialmente com o impacto das redes sociais, amplifica essas dinâmicas invisíveis. As redes sociais, longe de serem a causa primária de transtornos emocionais, atuam como um amplificador desses padrões já presentes, intensificando a pressão emocional e a sensação de desconexão dos jovens com a sua identidade. Eles são confrontados diariamente com ideais inatingíveis, com comparações constantes, o que alimenta um ciclo de insegurança e, em muitos casos, de autoagressão emocional. Contudo, é importante sublinhar que as redes sociais não causam diretamente esses comportamentos, mas funcionam como um reflexo distorcido das dinâmicas emocionais que já existem e que são reforçadas por gerações.

O Poder da Psicologia e da Epigenética na Cura Familiar e Social

A psicologia, quando combinada com a epigenética, oferece um caminho poderoso para quebrar esses ciclos invisíveis de sofrimento que se perpetuam ao longo do tempo. O autoconhecimento, tanto a nível individual quanto familiar, é a chave para interromper esse ciclo. Ao confrontarem-se com as feridas não curadas do passado, os pais podem reconfigurar a forma como se relacionam consigo mesmos e com os filhos, criando um ambiente emocional mais equilibrado e saudável. Essa transformação não é apenas pessoal, mas gera um impacto profundo nas gerações seguintes.

A psicologia tem um papel fundamental aqui: não apenas na compreensão desses ciclos, mas também no desenvolvimento de intervenções que possam promover a cura e a saúde mental, prevenindo transtornos evitáveis. Ao aplicar a teoria epigenética da personalidade, os psicólogos podem ajudar os jovens a compreenderem as forças invisíveis que os influenciam, permitindo-lhes tomar decisões mais conscientes e equilibradas. O conhecimento dos mecanismos epigenéticos permite que se ofereçam soluções de intervenção precoce, trabalhando não apenas com os sintomas, mas com as causas subjacentes, aquelas que se arrastam nas camadas mais profundas do inconsciente familiar.

Portanto, a verdadeira transformação começa quando as famílias começam a ver os seus desafios emocionais não como falhas pessoais, mas como resultados de processos invisíveis e profundamente enraizados que precisam de cura. Pais curados criam filhos mais equilibrados, e essa cura começa com o reconhecimento dos traumas e a compreensão do seu impacto transgeracional. Quando isso acontece, as gerações futuras podem nascer e crescer num ambiente de maior compreensão, aceitação e equilíbrio emocional.

Este é um alerta urgente para repensarmos a nossa abordagem à saúde mental e ao desenvolvimento humano. A psicologia e a epigenética oferecem não apenas uma compreensão científica do que acontece nos nossos corpos e mentes, mas também a oportunidade de, conscientemente, interromper os ciclos de sofrimento. O futuro das novas gerações depende da nossa capacidade de agir agora, para quebrar os padrões herdados e criar um caminho de cura genuína e de realização existencial para todos. O desafio está lançado: como vamos usar o conhecimento que temos para transformar o presente e oferecer um futuro mais saudável, equilibrado e consciente para os nossos jovens?

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