A espondilite anquilosante (EA) é uma dessas doenças discretas que se escondem atrás de nomes complicados. Soa a “latim médico”, a algo raro e longínquo, mas a verdade é que afeta milhares de pessoas em Portugal. A coluna, aos poucos, vai-se tornando rígida. Como se o corpo estivesse a aprender a não se mexer. Mas o que muitos ignoram — e quase ninguém diz — é que esta rigidez física vem muitas vezes acompanhada por uma rigidez emocional. A dor instala-se na mente com a mesma persistência com que se entranha nos ossos.
Artigo da responsabilidade do Dr. Alexandre Bogalho. Psicólogo Clínico. Neuropsicólogo de Hospitais Privados.
Quem vive com espondilite anquilosante carrega uma condição crónica, invisível, por vezes incompreendida. A doença, de natureza inflamatória, ataca sobretudo a coluna vertebral, podendo comprometer também outras articulações. Em casos mais avançados, pode conduzir à fusão das vértebras, limitando de forma severa a mobilidade do doente. Mas entre a rigidez das articulações e o cansaço físico, esconde-se outra dimensão da doença: a saúde mental.
Dimensões psicológicas da dor
Viver com dor crónica altera não apenas o corpo — altera o mundo inteiro da pessoa. O humor, a disposição, o sono, a autoimagem, as relações, o trabalho. Tudo. A EA impõe um desgaste mental silencioso, que vai corroendo a qualidade de vida e a esperança.
É uma das companheiras mais frequentes da EA. A persistência da dor, as limitações físicas e o impacto no estilo de vida podem desencadear episódios depressivos. A perda de autonomia, a quebra na vida social e profissional, e a dificuldade em manter planos de vida estáveis geram sentimentos de inutilidade e desespero. A depressão nem sempre se apresenta como tristeza — muitas vezes é uma ausência: de vontade, de prazer, de horizonte.
A incerteza constante — “como vou acordar amanhã?” — alimenta um estado de alerta contínuo. A ansiedade na EA está muitas vezes ligada ao medo da progressão da doença, da dor inesperada, da dependência dos outros. Pequenas tarefas do quotidiano tornam-se fontes de stress: sair de casa, conduzir, trabalhar. A previsibilidade desaparece, e com ela, a segurança emocional.
A incompreensão da doença, a invisibilidade dos sintomas e o cansaço constante afastam o doente do convívio. Muitos começam a recusar convites, a faltar ao trabalho, a evitar sair. Aos poucos, a rede de apoio encolhe. Os amigos não sabem o que dizer, os colegas não entendem, a família nem sempre percebe. A solidão instala-se — não como um estado ocasional, mas como uma nova forma de viver.
O corpo muda. A postura encurva, o ritmo abranda. A imagem ao espelho já não coincide com a imagem interna. A identidade sofre com isso. Há uma dor simbólica na perda do corpo que se tinha, da vida que se levava. A autoestima fragiliza-se. O prazer em cuidar de si próprio esmorece.
É mais do que cansaço. É uma névoa mental: dificuldade em concentrar-se, em manter o foco, em organizar ideias. O cérebro também se inflama, de certa forma. Chama-se muitas vezes “brain fog” (nevoeiro mental) e interfere com o desempenho profissional, com as conversas, com a leitura. Tudo se torna mais pesado do que devia.
A rotina de uma pessoa com espondilite anquilosante é, muitas vezes, um exercício de resistência. Tarefas simples — levantar-se, vestir-se, subir escadas — podem exigir um esforço desproporcionado. Há dias em que o corpo não responde. Há manhãs em que sair da cama parece uma missão impossível. O sono é interrompido pela dor, o humor pela frustração, os planos pela imprevisibilidade dos sintomas.
O mundo laboral nem sempre é adaptado a estas realidades. A produtividade é afetada, os chefes nem sempre compreendem, os colegas desconfiam. “Estás sempre de baixa”. “Mas pareces bem”. E assim se instala o estigma. A EA não é visível aos olhos de quem não a vive. E isso pesa.
Intervenções necessárias
O tratamento da EA não pode — nem deve — limitar-se aos anti-inflamatórios e à fisioterapia. É uma doença que exige um olhar holístico, atento à complexidade do ser humano.
O apoio psicológico regular deveria ser parte integrante do plano terapêutico. Terapias cognitivo-comportamentais têm mostrado eficácia na gestão da dor crónica, no combate à depressão e na redução da ansiedade. Mais do que tratar sintomas, trata-se de devolver sentido e ferramentas de enfrentamento ao doente.
Partilhar experiências com outros doentes quebra o isolamento. Traz identificação, empatia e estratégias práticas. Saber que não se está sozinho no sofrimento é, muitas vezes, o primeiro passo para a aceitação.
É fundamental que os doentes compreendam a sua condição, conheçam os seus direitos, e saibam como lidar com os desafios do quotidiano. Programas de educação terapêutica, conduzidos por equipas multidisciplinares, empoderam os pacientes e reduzem a dependência dos serviços de urgência.
Flexibilidade de horários, possibilidade de teletrabalho, pausas regulares, cadeiras ergonómicas — pequenas mudanças que fazem uma grande diferença. A manutenção da atividade profissional é não só um direito, mas uma forma de preservação da identidade e do equilíbrio emocional.
A EA continua a ser pouco conhecida, e por isso mal compreendida. É preciso dar-lhe visibilidade, não para dramatizar, mas para humanizar. Campanhas de sensibilização, formação para profissionais de saúde e informação clara nos media podem mudar mentalidades.
A espondilite anquilosante não é só uma doença das costas. É uma doença que atinge a pessoa inteira — corpo, mente, identidade. No dia 25 de Maio, não se acende uma vela, nem se soltam balões. Mas talvez se possa abrir espaço para escutar quem vive com esta doença. Escutar sem pressa, sem conselhos prontos, sem minimizar.
Porque há dores que não se vêem. E porque, às vezes, o maior alívio vem do simples ato de ser compreendido.
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