A qualidade da diálise em Portugal ombreia com as melhores do mundo, mas é também necessária inovação para melhorar a experiência dos doentes que necessitam destas técnicas para viver.

  

Artigo da Prof. Dr. Serafim Guimarães Nefrologista no Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho

 

O tratamento de doentes renais crónicos pela hemodiálise (disponível nos EUA desde 1966 e, em Portugal, desde a década de 1970) trouxe a milhões de doentes com falência renal a possibilidade de terem as suas vidas prolongadas artificialmente, graças a máquinas que substituem a sua função renal perdida. No nosso país, há acesso livre a estes tratamentos, completamente suportados pelo SNS.

Apesar de ser uma doença muito grave, pois trata-se da perda de um órgão muito importante, muitos destes doentes têm sido capazes de ter uma vida quase normal, produtiva e com muitas conquistas pessoais e sociais, trabalhando, construindo uma família, criando trabalho físico, intelectual e artístico. Enfim, desfrutando da vida.

SONHO COM UMA VIDA SEM LIMITAÇÕES

Alguns dos sintomas que apresentam devem-se à própria diálise, sendo que a maioria emerge da perda simultânea e contínua da função renal residual, que se expressa como agravamento do seu estado de saúde. Ou então, esses sintomas devem-se às suas comorbilidades, nomeadamente as frequentes complicações cardiovasculares, que são particularmente limitantes.

Mesmo assim, a culpa é sempre do tratamento, o que, compreensivelmente, gera sentimentos de frustração e revolta. A obrigatoriedade de ter de ir a uma clínica três vezes por semana reforça esse sentimento de prisão, tanto mais que a reabilitação é tão grande que permite que os doentes sonhem com uma vida sem estas limitações.

A solução pela qual alguns ambicionam é o transplante renal. Apesar de ser mais antiga do que a própria hemodiálise regular (o primeiro transplante renal foi realizado em 1954, por Joseph Murray), não tem conseguido impor-se como a alternativa oferecida à maioria dos doentes, mesmo com todos os progressos técnicos, terapêuticos ou operacionais. Por esse motivo, a diálise continua a ser a opção mais utilizada.

A GRANDE ALTERNATIVA

A libertação da obrigação de ir ininterruptamente à clínica desperta em todos o desejo de encontrar uma solução diferente. Atualmente, a grande alternativa é a diálise peritoneal, que implica a implantação de um cateter abdominal e três ou quatro pausas diárias para a realização de um procedimento de troca de fluidos; ou passar várias horas, todas as noites, ligado a uma máquina que realiza as trocas.

Alguns doentes que valorizam a autonomia adotam esta opção, mas muitos não têm condições clínicas para o fazer, o que, associado à baixa literacia e más condições habitacionais, contribui para uma baixa penetração desta técnica em vários países, nos quais se inclui Portugal.

FERRAMENTAS INCOMPLETAS E INSUFICIENTES

Perante estas alternativas de tratamento, é legítimo perguntar qual é a melhor delas. A resposta tem sido: depende do doente.

Até agora, para se poder comparar os resultados destes tratamentos, temos recorrido a ferramentas ainda muito incompletas e insuficientes: a taxa de mortalidade e de internamentos, os dados analíticos respeitantes a problemas fisiopatológicos relacionados com complicações da falência renal ou efeitos dos tratamentos (anemia, metabolismo do osso, equilíbrio ácido-base, valores da pressão arterial, da albumina, de iões, problemas com o acesso, taxa de infeções, etc.).

Vários destes indicadores são apenas sensíveis a acontecimentos ou alterações quando estes já ocorreram, sendo, por isso, de pouca utilidade para melhorar a vida dos doentes, servindo apenas como indicadores a posteriori da qualidade dos serviços ou das ações de médicos, enfermeiros e outros profissionais.

A experiência de se viver com esta doença ainda não é, por isso, completamente mensurável e as aproximações que têm sido feitas ainda não permitem traçar um quadro rigoroso, ao ponto de podermos considerar estes indicadores como os objetivos reais do tratamento, no sentido de os considerar alvos para melhoria.

Contam-se entre estes indicadores os reportados pelos doentes e pelas famílias (os chamados PROM – Patient-Reported Outcome Measures e PREM – Patient-Reported Experience Measures), que quantificam a sua vida e as suas experiências, designadamente a qualidade de vida. Deseja-se que estes indicadores possam vir a ser usados de forma corrente na investigação de novos fármacos ou outras intervenções terapêuticas, de modo a constituírem o critério de aprovação, se constituírem melhoria efetiva para os doentes.

CUSTOMIZAÇÃO DO TRATAMENTO

Outro fator que pode melhorar a qualidade de vida dos doentes é a customização do tratamento. Consiste em ir ao encontro da forma de tratamento que melhor se possa adaptar às necessidades de cada doente, em vez de o obrigar a “encaixar-se” nas soluções existentes.

Para isso, é mandatório que se possam oferecer as alternativas adequadas à situação de cada doente em tratamento dialítico, para que cada um possa beneficiar daquela que for mais ajustada à sua situação, enquanto espera pelo transplante renal ou para sempre, na impossibilidade de o mesmo ser realizado.

Sempre que possível, o doente deve escolher que técnica quer fazer, tendo em conta o respeito pelo princípio ético da autonomia. Quase sempre, esta opção irá no sentido de haver um afastamento dos hospitais de agudos e uma escolha pelas soluções que envolvam cuidados de saúde mais próximos da residência do doente.

HEMODIÁLISE DOMICILIÁRIA

Uma das possibilidades mais ansiadas é a hemodiálise domiciliária. Permite uma melhor adaptação dos horários às necessidades da pessoa, permite que haja mais liberdade e flexibilidade, autonomia e conforto. E não obriga a pessoa a deslocar-se à clínica, permitindo que haja uma maior liberdade de tempo para realizar as atividades de caracter familiar e pessoal, melhorando assim a saúde física e mental da pessoa.

A hemodiálise domiciliária em Portugal é residual, porque o modelo português de financiamento, desenhado em 1978 e modificado em 2008, privilegia a diálise em centros. A diálise peritoneal (que é feita em casa) e o transplante renal só são ministrados na dependência dos serviços de Nefrologia do SNS, que nem sempre são os mais próximos da residência do doente, não havendo, no modelo de reembolso que temos, qualquer estímulo ao aparecimento de formas alternativas de tratamento.

Leia o artigo completo na edição de maio 2022 (nº 327)