Este afastamento que a pandemia nos trouxe veio enfatizar ainda mais a importância da humanização dos cuidados de saúde, a urgência de olhar o doente para além da doença e de trazer alegria e humor para um lugar onde são tão necessários.

 

Artigo da responsabilidade de Luiza Teixeira de Freitas, presidente da Operação Nariz Vermelho

 

Na Operação Nariz Vermelho celebrámos, no mês passado, o regresso, em modo presencial, a todos os 17 hospitais onde estamos presentes. É um enorme alívio estar de volta, e não há nada como estar ao vivo, voltar a olhar nos olhos e levar alegria e humor à criança hospitalizada, aos seus familiares e aos profissionais de saúde, através da arte do Doutor Palhaço.

Em março de 2020, com a chegada da pandemia, vimos a nossa forma de trabalhar abruptamente interrompida e tivemos de alterar as dinâmicas do nosso dia a dia e adaptá-las ao contexto que se vivia naquele momento. Como faz um Doutor Palhaço para trabalhar a partir de casa? Como conseguir que uma arte que vive da troca de emoções com o outro continue a fazer sentido através de um ecrã? Mas, de forma surpreendente e emocionante, apenas numa semana, a Operação Nariz Vermelho reinventou-se.

PALHAÇOS NA LINHA

Colocámos em marcha, num primeiro momento, a TV ONV, um projeto no qual os Doutores Palhaços produziam vídeos em casa que eram lançados duas vezes por dia no nosso canal de Youtube, disponíveis para as crianças hospitalizadas, mas também para qualquer outra pessoa que os quisesse ver. Ao todo, foram 331 episódios de um projeto que desafiou a nossa capacidade de garantir a regularidade bidiária, mas sobretudo a manutenção da relevância artística num formato que não nos era natural.

A verdade é que a TV ONV nos deu as bases para, num segundo momento, lançarmos o projeto “Palhaços na Linha”, pensado e conceptualizado pela nossa direção artística, que tem como evolução a personalização do contacto, já que a dupla de Doutores Palhaços, cada um em sua casa, entrava em vídeochamada com as crianças. Para isso foi essencial o apoio dos profissionais de saúde, já que, para chegar a cada criança, foram utilizados tablets, presos em suportes de soro, que eram transportados pelos corredores dos serviços de Pediatria por estes nossos aliados.

O “Palhaços na Linha” trouxe muitos aspetos positivos à nossa organização. Até então, era difícil imaginar que um Doutor Palhaço podia “existir” num ecrã e descobrimos que, afinal, pode ir muito mais além. Além de proporcionar aos artistas ferramentas que não cabiam nas suas batas no trabalho presencial, foi graças às potencialidades da Internet que passaram a poder estar em muitos lugares ao mesmo tempo e desenvolver novas capacidades dentro do universo criativo.

Acima de tudo, o “Palhaços na Linha” veio fortalecer ainda mais as nossas relações com as equipas de profissionais de saúde dentro dos hospitais. Precisámos deles mais do que nunca, foram os nossos braços e pernas durante meses a fio, e o fortalecimento desta relação sentiu-se muito quando retornámos ao presencial. Sentimos que estamos mais unidos do que nunca.

RIR É O MELHOR REMÉDIO!

Este afastamento que a pandemia nos trouxe veio enfatizar ainda mais a importância da humanização dos cuidados de saúde, a urgência de olhar o doente para além da doença e de trazer alegria e humor para um lugar onde são tão necessários. Isto aliás é uma evidência científica, comprovada em vários estudos, que são acompanhados pela nossa área de investigação (responsável pelos protocolos com universidades e que tem a missão de apoiar ou coordenar projetos científicos sobre o impacto do Doutor Palhaço no âmbito do processo terapêutico).

Para comprovar a importância da validação científica do nosso trabalho, há uns anos lançámos o livro “Rir é o Melhor Remédio!”, que traduz várias teses de doutoramento e mestrado sobre os benefícios da intervenção dos Doutores Palhaços da Operação Nariz Vermelho junto das crianças e adolescentes hospitalizados, familiares e profissionais médicos. Estes projetos surgiram no âmbito de um protocolo celebrado com a Universidade do Minho.

EFEITOS COMPROVADOS NA EFICÁCIA DOS TRATAMENTOS

A capacidade de rir e de sentir alegria durante uma experiência mais sensível como uma hospitalização tem efeitos comprovados na eficácia dos tratamentos e promove uma melhoria mais rápida, física e psicológica, do doente. Rir ajuda a relaxar o corpo, promove a libertação de serotonina, um antidepressivo natural, e de endorfinas, as hormonas responsáveis pelo bem-estar. É aí que trabalham os Doutores Palhaços, no lado saudável da criança: na sua capacidade de brincar, que a doença por vezes lhe tira.

O trabalho conjunto dos profissionais de saúde e da Operação Nariz Vermelho é um dos pilares, entre tantos outros, para que a humanização e harmonia do ambiente hospitalar vá ganhando cada vez mais espaço.

Transformar o período de internamento da criança numa experiência positiva é o nosso objetivo, efeito esse que nos interessa que seja também sentido pelos pais e cuidadores e pelos profissionais do hospital. Segundo testemunhos dos mesmos, que colaboraram nos estudos mencionados acima, 92% das crianças esquecem-se de que estão num hospital depois de estarem com os Doutores Palhaços; 85% referem que as crianças colaboram mais com os tratamentos ou exames; 73% sublinham que as crianças apresentam maiores e/ou mais rápidas evidências clínicas de melhoria após o contacto com os Doutores Palhaços; e finalmente (provavelmente a percentagem que nos enche de mais certezas de que o humor é essencial) 99% dos pais referem que gostariam que visitássemos as crianças com mais frequência.

“AQUELE LUGAR ONDE HÁ PALHAÇOS!”

É importante também realçar que todos os Doutores Palhaços da Operação Nariz Vermelho são profissionais remunerados e especializados para estarem nos hospitais. São formados na arte do Palhaço ou noutros tipos de artes performativas, mas sempre com a experiência em clown. Além das outras inúmeras formações que vão sendo feitas à equipa com frequência – do foro artístico, social, psicológico ou focadas na área da saúde.

Este ano celebramos 20 anos e há uma pequenina história que levamos sempre connosco como lembrança da essência do que fazemos: a da mãe que diz à criança que vai ter de regressar ao hospital, e que recebe a resposta pronta “ah boa, aquele lugar onde há Palhaços!”.

Os números enchem-nos de orgulho. São mais de 53 mil encontros com crianças hospitalizadas em mais de 100 serviços pediátricos dos muitos hospitais onde estamos. Os números não enganam, o balanço é muito positivo – crescemos com responsabilidade e excelência, mas o nosso mote continua o mesmo do primeiro dia  – um sorriso de cada vez, uma criança de cada vez.

Juntamente com todos os minutos de todos os dias que contam a nossa história, estão também as memórias repletas de emoção e os obstáculos ultrapassados com orgulho e dedicação, bem como a certeza de que o nosso trabalho é indispensável e faz toda a diferença. É com essa consciência e a responsabilidade no rigor, na excelência em todas as dimensões do nosso trabalho e na qualidade artística que encaramos o futuro.

Para que cheguemos a cada vez mais crianças hospitalizadas em Portugal.

Artigo publicado na edição de abril 2022 (nº 326)