A encefalopatia hepática representa um conjunto de alterações neurológicas, potencialmente reversíveis, que ocorrem em indivíduos com doenças do fígado, tipicamente com cirrose hepática. Estas alterações resultam da acumulação de substâncias tóxicas no cérebro, que não são adequadamente eliminadas pelo fígado e que afetam o funcionamento cerebral.

Artigo da responsabilidade da Dra. Isabel Garrido. Serviço de Gastrenterologia, Centro Hospitalar Universitário de São João. A convite da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia

 

Tipicamente, os doentes com encefalopatia hepática apresentam comprometimento da função cognitiva e neuromuscular. Os sintomas podem variar desde défices subtis, apenas identificados em testes específicos (encefalopatia hepática mínima), até sintomas mais evidentes, que afetam a atenção, o tempo de reação e a memória.

Os doentes ficam confusos, desorientados e sonolentos, com alterações na personalidade, comportamento e humor. As perturbações do sono, como a insónia e a sonolência durante o dia, são também manifestações comuns.

Podem ainda existir sintomas neuromusculares, como dificuldade em realizar movimentos voluntários, rigidez ou espasmos musculares.

Graus de gravidade

Os indivíduos com encefalopatia hepática avançada podem evoluir para um estado de coma. A gravidade da encefalopatia pode ser classificada de acordo com as manifestações clínicas:

MínimaResultados anormais em testes psicométricos, sem manifestações clínicas
Grau IMudanças no comportamento, redução da atenção, perturbações do sono
Grau IIDesorientação temporo-espacial, comportamento inadequado
Grau IIIDiscurso incoerente, fala arrastada, sonolento mas despertável
Grau IVComa

 

Impacto na qualidade de vida

Esta patologia tem um elevado impacto na qualidade de vida do doente, estando associada a um aumento do risco de quedas e de acidentes de viação, bem como problemas de desempenho no emprego.

A encefalopatia hepática pode ser episódica, recorrente (crises que ocorrem várias vezes dentro de um intervalo de tempo de seis meses ou menos) ou persistente (alterações comportamentais que estão sempre presentes, intercaladas por episódios de encefalopatia hepática evidente).

Os episódios de encefalopatia hepática podem ser precipitados por vários fatores, desde infeções, hemorragia digestiva, obstipação e medicação, que devem ser ativamente procurados e tratados.

Epidemiologia

A incidência e prevalência da encefalopatia hepática estão relacionadas com a gravidade da insuficiência hepática subjacente. A encefalopatia hepática sintomática ocorrerá em 30-45% dos indivíduos com cirrose hepática em algum momento da sua vida. Por outro lado, a encefalopatia hepática mínima pode ser identificada em até 80% dos doentes com cirrose hepática.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se nos sintomas do doente, no exame físico e nas análises sanguíneas. A encefalopatia hepática costuma ser facilmente detetada em indivíduos que apresentam sintomas neuropsiquiátricos evidentes. Os pacientes devem ser questionados sobre mudanças nos seus padrões de sono e na sua capacidade cognitiva (por exemplo diminuição do tempo de atenção ou alterações da memória).  Os familiares/conviventes podem ajudar na colheita da história clínica, ao descrever os comportamentos presenciados nos últimos tempos.

Os pacientes devem ser examinados quanto a sinais de disfunção neuromuscular. Habitualmente estes indivíduos apresentam flapping, um sinal muito típico de encefalopatia hepática, descrito como um tremor na mão quando o punho é estendido, às vezes parecido com o “bater de asas de um pássaro”.

A amónia é a toxina mais conhecida que precipita a encefalopatia hepática. Apesar dos seus níveis no sangue não serem fundamentais para estabelecer o diagnóstico, tipicamente os doentes com encefalopatia hepática apresentam valores de amónia elevados.

É também fundamental a realização de outros exames laboratoriais e radiológicos para excluir outras causas de alterações do estado mental (por exemplo AVC ou tumores cerebrais) e para procurar condições que possam ter desencadeado o episódio de encefalopatia hepática (por exemplo infeção ou hemorragia).

Tratamento

Dependendo da gravidade do quadro clínico, o tratamento pode ser realizado em meio hospitalar ou em ambulatório.

O tratamento inclui a correção das causas que possam ter precipitado as alterações neurológicas e a utilização de medicamentos que diminuam os níveis de amónia, tais como a lactulose e a rifaximina. A dose de lactulose deve ser ajustada para que o doente tenha 2 a 3 dejeções moles por dia – 30 a 45mL, 2 a 4 vezes por dia. Os enemas de lactulose também podem ser administrados para ajudar a aumentar o número de dejeções. Se não existir melhoria após o início do tratamento com lactulose, deve ser posteriormente adicionada a rifaximina (400mg 3 vezes por dia ou 550mg 2 vezes por dia). É fundamental que os doentes cumpram a medicação prescrita pelo médico, de forma a minimizar o risco de encefalopatia.

Os cuidados gerais incluem ainda um suporte nutricional adequado. Na verdade, cerca de 75% destes indivíduos sofrem de desnutrição moderada a grave e perda de massa muscular. Por isso, devem ser instruídos a comer pequenas refeições ao longo do dia, assim como um lanche noturno, de forma a evitar o jejum. É ainda fundamental fornecer um ambiente seguro, sendo que devem ser instituídas precauções para prevenir as quedas.

Pacientes com encefalopatia hepática recorrente ou persistente devem ser considerados para transplante hepático.

Prognóstico

Até 90% dos doentes recuperam do episódio de encefalopatia hepática após eliminação dos fatores desencadeantes e início de tratamento dirigido. No entanto, todos os sinais clássicos de descompensação da cirrose, incluindo a encefalopatia hepática, estão associados a um aumento da mortalidade.

Na verdade, a descompensação geralmente acompanha a progressão da doença hepática subjacente, que determina um mau prognóstico a curto e a longo prazo. A probabilidade de sobrevivência após um primeiro episódio de encefalopatia hepática é de cerca de 40% em 1 ano e de 15% em 5 anos.

Artigo publicado na edição de janeiro 2023 (nº 334)